A pior pessoa pessoa do mundo é a melhor... e pode ser você!
Quando o cinema vira um grande espelho da alma, a gente fica com vontade de escrever ideias e compartilhar insights
Dois filmes muito recentes me deixaram perplexo em janeiro de 2022. “A Filha Perdida” e “A Pior Pessoa do Mundo”. E minha cabeça não parou de revisitar os roteiros muito bem articulados recordando, repetindo e elaborando cada cena, cada situação desconfortável jogada na tela!
Enquanto leio e releio “N” tretas anti-realidade nas redes sociais sobre a obra de Elena Ferrante transposta para o cinema netflixiano decidi examinar “A Pior Pessoa do Mundo” pois acho que isso ninguém fez ainda. Claro darei matizes a algumas palavras ao “A Filha Perdida” pois temos conexão de possibilidades narrativas femininas. As duas atrizes dão vida a mulheres que percorrem suas vidas como protagonistas do desejo! Quase Alices que entram na toca do coelho por vontade própria, sem convite!
“A Pior Pessoa do Mundo” é um filme dramático inusitado e sendo neste momento distribuído mundo afora como uma comédia romântica (num é bem isso) dirigido por Joachim Trier, em 2021. É o terceiro filme desse sensível gênio, após “Reprise” e “Oslo, 31 de Agosto”, e faz parte da “Trilogia de Oslo” deste diretor, pouco conhecido por terras brasilis…
O que me chamou a atenção é que “A Pior Pessoa do Mundo” é um retrato meditativo em 12 atos de nossa existência milenial apresentada como um drama recheado de anedotas instigantes e às vezes patetas que mexem com um espelhamento inusitado e direcionado a cada um de nós. Até esse título já nos deixa incomodados — esperamos alguma estrutura perversa retratada e encontramos uma garota normal que simplesmente segue suas vontades num labirinto de escolhas mais ruins do que boas. Durante quatro anos, até chegarmos nos anos Covidianos. Identidade, existencialismo, amor e luto — passaremos por tudo isso durante o filme!
Até Freud é mencionado num dos atos o que claro, surpreende mas não assusta. Trier, o diretor poderia ser um excelente praticante da Psicanálise — no mínimo ele é um pesquisador de causas, efeitos, responsabilidades e relações familiares truncadas como a nossa, como a sua caro leitor. Daê chegamos à uma questão importante sobre a maternidade e escolhas. Já no filme “A Filha Perdida”, Leda é mãe – mas numa espécie de Medéia contemporânea — demonstra “inaptidão ao cargo"… e qual o problema? Nenhum. Mas parece-me que Leda incomodou muita gente nas redes sociais exatamente por ser ELA MESMA…
No “A Pior Pessoa do Mundo” temos a mesma questão — só que invertida, pois a protagonista Julie nem ousa tentar ser mãe. E quando Julie acidentalmente engravida tem um aborto espontâneo e fica feliz por isso! Julie tem 30 anos e assim como muitos sujeitos ainda não achou o que fazer da vida. Ela representa o inverso de muita gente que chega na clínica, angustiada pelo narcisismo dos instagramers e pela exigência em ser, sentir, comer e respirar o desejo do Outro. Ela já repudia isso tudo! Ela é extremamente inteligente, desiste da medicina e da psicologia, vira fotógrafa e vai trabalhar numa livraria. Tem uma mãe muito preocupada com seu futuro e uma relação de desamor com um pai idiotizado e distante — e claro, muito dessa ausência tem conexão com a ilustração do Grafo do Desejo desta moça, que deveria ser equacionado juntamente com um mapa-astral! Talvez os dois coincidiriam em muitas efemérides! Ela se envolve com um desenhista de HQ catorze anos mais velho de papo-legal e com um gigante norueguês mais interessado em ecologia e vegetarianismo — que trabalha como barista num coffee-shop transado que numa sequência divertida sobre cogumelos mágicos é o menos afetado pelos fantasmas do Id!
Trier me lembra muito em seus argumentos os filmes do Woody Allen, nesta mistura sensacional de tretas familiares, amores confusos, Psicanálise aplicada, utilização da cidade como personagem, Freud e suas mulheres.
E por falar em Freud e o feminino, terminei a leitura de um livro interessante nesta semana. A psicanalista Sylvie Sesé-Léger faz um re-leitura poderosa das “curas femininas de Sig”, enfatizando uma posição contratransferencial de Freud. A abordagem inédita de Sylvie consiste em fazer ressoar os textos clínicos de Freud com os textos das próprias analisandas, que publicaram o relato de suas análises — são elas… Dora, Elfriede Hirschfeld, Sidonie Csillag, Anna G. e Hilda Doolittle. O livro ainda não foi traduzido para o Português mas algo me diz que em breve algum editor vai se interessar (Freud et le féminin - Dora, Sidonie et les autres; Sylvie Sesee-Léger | CampagnePremiere/Recherche).
Essa autora destaca com o mesmo heroísmo das protagonistas dos filmes aqui apresentados o quanto as vicissitudes emocionais dessas mulheres interessantíssimas confrontaram Freud com o famoso enigma do feminino ao fertilizar sua doutrina. Ao longo dos anos, o tio Freud observava que a relação com o objeto primitivo, a tal mãe, era decisiva para a vida afetiva e sexual da mulher — mas mesmo assim ele se recusará a ocupar o lugar de uma metáfora materna para seus pacientes. Caro leitor, sinto aqui que uma rigidez freudiana não deixa de ter acarretado uma particular surdez na vivência analítica com estas mulheres. Surdez contratransferêncial do tio Sig — claramente escotoma analítico. Mas era outro mundo, outra época, eram outros Inconscientes. Freud adoraria colocar no seu divã a Julie de Trier ou a Leda de Ferrante. Até a Louise Bourgeois poderia ter sido uma excelente paciente — só que não! No livro Destruição do Pai Recontrução do Pai (Cosac & Naify, 2000) Louise numa entrevista acusa Lacan de guérisseur (curandeiro) e para ela Freud e Lacan nada fizeram pelos artistas — “… estavam descascando a árvore errada”, diz ela. E chego assim usando a Louise a um ponto importante — esta mulheres destes filmes SUBLIMAM, deixam legados. Estes legados têm altos preços — dentre elas a SOLITUDE CRIATIVA! Mas também fantasio que Freud não suportaria atendê-las ou ele se apaixonaria e teria uma ereção durante alguma sessão! Afinal, estas duas heróinas do desejo destes filmes (pois destemidas sabem o que querem para si) iriam mexer com a libido do barbudo venerado genial. As tais mulheres que detêm o FALO! Apostas?
Tanto Julie quanto Leda, são sujeitos que não aceitaram as funções impostas seja lá pelo patriarcado, pela biopolítica ou núcleos familiares apodrecidos pela frustração dos genitores ou maridos, namorados. Sabe aquela frase dos pais que talvez você já tenha ouvido numa briga em casa —“eu te quero feliz como não fui, como não puder ser” que mais atrapalha do que ajuda? Pois é caro leitor, essa “coisa” de corresponder ao desejo do Outro-família, da cultura, da sociedade idiotizada pela frustração não cola para estas Julies ou Ledas de hoje em dia.
Divido aqui uma memória recente onde sou a Julie com um pênis. Uma grande amiga certa vez disse que filho que mora com a mãe é gay e assim as associações vão numa torrente de interpretações e julgamentos — significantes sem fim que mais falam da pessoa do que do “filho que não se perdeu em escolhas de Outros e mora com a mãe". No caso o tal filho sou eu, que num trágico proscenium de “Édipo 2000”, perdi meu pai (2012) e continuei com a Jocasta por opção, por afinidade, por respeito, por amor de filho sim! A única coisa que amiga esquece, assim como Freud, é que é Édipo era Rei… e nada sei da vida sexual do Rei… e muita menos a amiga sabe que apesar das pessoas não serem casadas, podem até parecerem as piores pessoas do mundo, mas são também as melhores e muitas vezes até mais satisfeitas com as escolhas — têm arcos narrativos extensos, complicados, diferentes, sustentam e suportam a solidão e a solitude e estão prontas para assumir aquela coisa cabeluda chamada DESEJO como um sujeito que implica-se no percurso da vida com erros e acertos iguais à tal Julie!
Finalizando, jogo aqui uma reflexão importante sobre buscar seus desejos, implicar-se no caminho e o quanto custa para cada um de nós achar nesta incompletude uma determinada sublimação narcísica e o quanto homens se incomodam com mulheres que FAZEM! Se fosse um homem largando duas crianças como no caso de “A Filha Perdida” duvido que alguém estaria escrevendo algo…
Excelentes reflexões. Mulheres fálicas, contraditórias e incrivelmente, interessantes, pelo mesmo motivo. 🤗👏👏