A "Zona de Interesse" no divã!
Livres associações de um psicanalista sobre o filme de Jonathan Glazer
A experiência emocional de assistir ao filme Zona de Interesse é a de um longo sentimento de desconforto. Ao mesmo tempo fantasiei atender Rudolf Höss no divã. Desejo de analista interpretar as camadas do Inconsciente e sintomas desse sujeito que se dividia entre dever, aspirações familiares e um frio distanciamento do mal que criou e gerenciou. Sim, gerenciou... essa é a palavra certa e que nos traz Höss para uma atualidade neoliberal. Para Höss, a população dos campos eram Menschenmaterial, recursos humanos. Você já passou provavelmente por uma triagem, por entrevistas e por uma contratação por um certo RH de alguma corporação. Höss incarna um determinado darwinismo social onde o conceito é que sendo a vida uma luta, é aconselhável estar entre os melhores e ter um bom desempenho. Interessante, pois isso estruturou o mundo nazista e parece que ser o melhor perdura até hoje como um imperativo categórico de anti-fracasso! Poderia recebê-lo num divã armadilha onde assim fosse capturado antes de sua execução, mas o divã não é armadilha e isso colocaria a prática psicanalítica num grau de perversão mundana. Partindo do pressuposto de que a Zona de Interesse não é um cinema para qualquer um e que exige implicações e um determinado grau de suportabilidade resolvi fantasiar atender também sua esposa, Hedwig… e porque não seus filhos! Este desejo me coloca como perverso? Talvez seja apenas minha vontade de subverter o dispositivo analítico a uma distopia atemporal — um oneirogmos freudiano privado — onde a maldade humana pudesse ser metabolizada em chorume e assim arrancada da escura psique d’ecce homo. Ah, esse desejo de reparação de um psicanalista!
Não nos basta estudar Arendt ou decifrar o texto profundo de Giorgio Agamben (O que resta de Auschwitz: O aquivo e a testemunha [Homo Sacer, III]) para elaborar o conteúdo do filme ou o que caminha conosco após assistí-lo. Não nos basta ler e reler Primo Levi... Precisa-se de silêncio, atenção… testemunho! Precisa-se de elaboração em estado de negação da damnatio memoriae — é necessariamente impossível apagar a Shoah do ponto de vista de uma psicogenealogia de um lugar que não podemos esquecer! Pode-se ter e ser a atenção flutuante como defesa do horror durante a projeção do filme Zona de Interesse? Talvez sim. Mas não há como negar! Não estivemos em Auschwitz, não temos como testemunhar mas temos como recordar, elaborar para não repetir! E repartir elaborações particulares como se eu também estivesse no divã!
O diretor Jonathan Glazer não mostra o campo de 40km2 intramuros e a tal Zona de Interesse propriamente, em sua totalidade. Já sabemos o que aconteceu ali. Perversamente Glazer elabora sua visão não tão particular do livro. Além de decidir filmar em Auschwitz ainda reinventa o dispositivo cinematográfico colocando câmeras escondidas em vários locais. Os atores ficaram livres da equipe de filmagem — estavam autenticamente improvisando como num reality show. Uma técnica fantásmica muito atual, inaugurada pela empresa holandesa Endemol e que alimenta nosso sintomático voyerismo. Precisamos saber e ver da vida do Outro, para invejar, odiar e fracassar! Nem precisa ser por um buraco de fechadura ou sobre um muro…
E existe um muro no filme… O muro está lá. O muro divide, marca território de exterminio — assim como o campo, o muro é quase personagem e divide o campo em campos — o campo do poder aniquilador e mortífero, o campo da negação, o campo do neutro — aquele que nada vê, se recusa ou não pode ver! O muro por precaução não se deve ser transpassado. Mas podemos sim através de efeitos especiais vislumbrar de leve o outro lado em planos quase panorâmicos. Glazer elabora o extermínio sem mostrar quase nada — apenas implicando a luz e som das chaminés de crematórios e berros, choros, murmúrios, tiros e uma máquina à vapor que sempre se aproxima com sua carga de destino certo, cinzas ou sofrimento. Mas atenção aos incautos! Podemos num determinado momento adentrar em Auschwitz como turistas via vitrines de espólios humanos, durante um período de limpeza de algumas salas de exposição, incluindo uma câmera de gás e um crematório. Genialidade perversa do diretor? Assistimos ao depois, ao que resta do trauma nada particular! Glazer nos cala! Da tela escura do incômodo início do filme (que parece uma eternidade) até a descida de Höss à total escuridão nas últimas cenas — ofuscadas por uma música assombrosa digna de György Ligeti — fazendo justiça aqui, a trilha sonora é do genial Mica Levi — Glazer nos convoca a repensar nosso papel diante da banal maldade do Outro e no fundo reforça a máxima lacaniana de que se o tal Inconsciente é estruturado como linguagem o nazismo foi estruturado como a linguagem do terror, do genocídio, do macabro por um certo… Homo Demens! Aliás um demente que está numa segunda carreira (parafrasendo um autor francês, Renaud Camus no livro La Seconde Carrière d’Adolf Hitler). Essa segunda carreira do líder do Terceiro Reich de acordo com Camus não é menos terrível do que a primeira, mas é invertida pois ela passa por nossa contemporaneidade de forma fantásmica… por livros, filmes, vídeo games e séries ou pela sombra do nazifascismo que insiste num retorno inominável europeu ou norte-americano! Eternizamos o mal como arte, como entretenimento ou como armadilha política nada inofensiva da repetição. O nazismo é mesmo um grande paroxismo do antropoceno!
Muitos cineastas nos levaram aos campos da morte. Dos mais emblemáticos perlaboram em minhas lembranças… Alan J. Pakula em A Escolha de Sofia (1982) que nos levou para dentro de Auschwitz (e nesse filme, Sophia tem contato com um certo Höss), Spielberg em A Lista de Schindler (1993) e Roberto Benigni em A Vida é Bela (1997). Nestas visitas ao macabro li que outro cineasta, Michael Haneke, achou o filme de Spielberg imoral pois a cena da câmera de gás convertida em banho é inesperadamente perversa do ponto de vista de falta de respeito com as vítimas da Shoah. Nada menos importante do que acrescentar o documentário Shoah (1985), de Claude Lanzmann— 9h26min de imagens relacionadas a testemunhos o que nos conduz a Agamben, mais uma vez e seu Homo Sacer. Neste documentário/evento somos testemunhas das testemunhas. E elaborando sobre estas obras pensei profundamente na antropóloga Margaret Mead — em linhas gerais ela supõe que a civilização começou com uma fratura de um fêmur e sua cura, sua reconexão óssea. Pensando no Holocausto como uma fratura na e da civilização imaginei que o cinema, ao tratar destas feridas incuráveis talvez pratique a técnica do Kintsugi. É uma técnica de reparo japonês onde através de uma mistura de laca e pó de ouro objetos quebrados são reconstruídos. Penso que este cinema específico sobre o Holocausto através de um Kintsugi visual remonta estas fraturas perversas de nossa história para assim podermos observar e não esquecer do ocorrido via nova linguagem, nova sublimação e nova elaboração de um traumático coletivo! E Glazer foi mestre nisso em sua Zona de Interesse, nessa reconstrução plástica e estética de uma vida quase idílica ao lado das cinzas humanas. Glazer usa o extermínio não como artifício mas a mundanidade neoliberal como modus operandi et vivendi da família Höss. A narrativa intramuros não interessa! Apenas assombra o cotidiano, ilumina quartos com o fogo das chaminés! Assistimos à banalização do mal de Arendt através do cotidiano desta família Höss. Uma família alemã comum, submersa numa normalidade acachapante — um casal que parece apaixonado e seus cinco filhos reunidos em cenas triviais e inocentes de festa de aniversário, refeições e banhos despreocupados num rio ou numa piscina ridícula num jardim que recebe cinzas das chaminés dos crematórios. Uma vida onírica, paradisiaca na qual Hedwig Höss, muito orgulhosa de ser apelidada carinhosamente pelo marido de “a rainha de Auschwitz”, não vai abrir mão de seus status quo por absolutamente nada neste mundo. Só que esse “pequeno paraíso” faz fronteira com um determinado Inferno e somos novamente testemunhas disso! Sempre testemunhas de um destino familiar, por opção. Glazer nos implica numa posição de desconforto crescente — ao nos colocar do lado daqueles que sabem, mas se recusam a ver, ou perversamente aprovaram a limpeza étnica — e paradoxalmente provoca a nossa sensibilidade ao horror ausente da vida destas pessoas. Das roupas retiradas do Canadá do campo, que pertenceram aos que chegaram para a morte temos um vislumbre imoral diante de um espelho — e assistimos aos espólios inocentemete roubados pela vaidade da rainha de Auschwitz. E Glazer nos implica implica novamente num terminus ad quem muito autoral quando Höss recebe sua missão final, e isso não é um spoiler pois sabemos que o monstro Rudolf quase foi transferido para outro campo mas… retornou pra Auschwitz para eliminar, transferir e escravizar quase 700 mil húngaros — e retornou com desejo de aniquilar mais potente como um saclich ideal! Saclich é de difícill tradução direta mas tem conexão com significantes de performance: ser frio, direto, objetivo e reificante — coisificando os outro, mão-de-obra farta e barata para as empresas do complexo Auschwitz-Birkenau. Que CEO foi Höss! Que cara abusado, tão parecido com alguns CEOs que chegam ao meu divã!
Ocorre uma dança de positivo e negativo no filme (as cenas termais da garota das frutas) — tal qual uma terapia, do cotidiano, dos fatos diversos de uma vida pregressa ou ainda memórias incertas pós sonhos — que certamente nos remete ao pensamento que a resistência ao Reich era um ação negativa e que a vida ao lado da aniquilação em massa era o positivo, e é o que se conta e se confirma numa autenticidade histórica entre lingua (o filme é falado em alemão), cenários (a obra foi filmada em Auschwitz), roupas, penteados, móveis e alimentação.
Martin Amis, o autor da obra ficaria perplexo e honrado? Como saber? O filme não é o livro, certamente não, mas já basta para sentirmos o estigma do mal que foi Höss. Aliás recomendo a leitura do livro — fundamental... também perverso! Dividido em três pontos de angústia que se alternam como sujeitos — Thomsen, Doll e Szmul — e em seis partes — só temos uma alternância de sujeitos na parte final (Consequências), onde Esther, Gerda e Hannah têm a voz por via de Martin Amis. O livro apresenta algumas descrições de cenas horrendas — Glazer decidiu não denegá-las mas sim deixá-las para nossa sideração em sua obra e interpretação particular para o cinema. o cinema de Glazer não é fácil de engolir. É aspero! Visceral.
É um outro momento no cinema atual! Nova linguagem? Talvez! Grandioso no terror como as obras pictóricas de Anselm Kiefer e sua Arte após Auschwitz. Você observa as obras, elas te capturam num testemunho privado de observador — existe dor nestas obras e uma elaboração do pós-guerra e do nazismo como metáfora, mas como agente-provacador, Kiefer assim como Glazer metabolizam o testemunho de formas eficazmente assustadoras! Ficamos parados em alguns pontos do filme apenas observando — pois a ideia de sermos testemunhas caladas de um cotidiano tão normótico e tão atual, estilo reality show eleva o nosso testemunho do dia-a-dia a um impacto desconfortável. Não posso me afastar do estranho, infamiliar... de um certo Das Unheimliche! Precisamos testemunhar para não esquecer.