Bendito é o fruto do vosso ventre!
O culto das Bene Gesserit é fascinante e importante no filme DUNA de Dennis Villeneuve. Valem algumas considerações de um praticante da Psicanálise, mas não do culto!
De início, faço um paralelo com o Judaísmo! Sempre soube no Judaísmo que a religião passa da mãe para o filho pelo ventre. Acho isso belíssimo!
As leis rabínicas definem como judeu aquele que nasce de mãe judia! Então posso afirmar que ser judeu é uma condição transmissível primordialmente pelo sangue! Na verdade tenho também compreendido que nenhuma outra religião é tão profundamente marcada pela ideia de “conversão” como a judaica. E sim, podemos nos converter ao judaísmo, ao budismo, ao catolicismo… Por outro lado, este processo de conversão ao judaismo vem adquirindo e desenvolvendo contornos cada vez mais rígidos atualmente. Isso é outro assunto, importante e interessante — muito bem articulado pela Psicanálise de Gérard Haddad, Raphaël Draï e Yosef Hayim Yerushalmi caso você caro leitor, deseje se aprofundar tanto quanto eu! Mas retornemos ao assunto desta newsletter…
No filme DUNA, Paul Atreides parece tanto uma ameaça à ordem religiosa das Bene Gesserit quanto objeto de surpresa e respeito! Frank Herbert, o autor da série de livros DUNA, nos transmite uma metáfora sobre grandes grupos de pessoas sendo controladas pela doutrina religiosa das Bene Gesserit num futuro estranho e inóspito!
Mas vejam que a religião parece um traço mais filogenético do que ontológico e a Lei da Mãe esta muito além da Lei do Pai! A tal Lei do Pai é, segundo Joël Dor (1991), aquela que regula o desejo que a Mãe tem de um objeto que não é mais só a criança, mas o Pai é aquele que supostamente o possui. A Mãe, por sua vez depende desse objeto de desejo que ela não tem, mas que o Pai possui e, por isso, está submetida à instância paterna. Para as Bene Gesserit de DUNA, a Lei da Mãe é o que vale, muito além da função de Mãe. É uma total inversão da Lei do Pai!
Vamos adentrar o romance de ficção-científica! Em DUNA, agora um espetáculo cinematográfico digno das grandes telas — Muad’Dib, nascido Paul Atreides é filho do duque Leto com a concubina lady Jéssica. No filme ainda não é mostrado mas Jéssica é filha natural do barão Vladimir Harkonnen Desculpe o spoiler caro leitor! Lady Jéssica é portadora de marcadadores genéticos importantes para as tais Casas e ordem religiosa — é uma Bene Gesserit por criação e treinamento.
Bene Gesserit é uma escola de treinamento físico e mental para garotas — homem não entra! — e foi fundada depois que uma rebelião entitulada Jihad Butleriano destruiu máquinas pensantes e rôbos — ou seja, toda Inteligência Artificial foi deletada e aniquilada! Se você for nerd como eu e tiver a “Dune Encyclopedia” ao lado, poderá verificar que esse culto das Bene Gesserit talvez começa aqui na Terra. Toda a ação de DUNA — registrada no filme de Villeuneuve — está no ano 10191 DG (Depois da Guilda – Formação da Guilda Espacial). A tal Jihad acontece em 200 AG (Antes da Guilda) e o culto Bene Gesserit tem mais ou menos 10 mil anos! Essa ordem religiosa das Bene Gesserit é meio que algo Jedi, com alguns poderes interessantes tais como saber quando uma pessoa está mentindo, controlar a fertilidade e portanto escolher o sexo do bebê além de ter uma tal “Voz” — o tal treinamento que permite controlar outras pessoas usando certas nuances e matizes de tom de voz! Que maravilha! Essa “coisa da Voz” foi utilizada no STAR WARS, hummm… mas sabemos que George Lucas leu DUNA, então tire suas conclusões.
As Bene Gesserit também são capazes de semear planetas inteiros com crenças religiosas. No filme de Villeneuve, a Reverenda Madre diz a lady Jéssica que um “caminho” foi traçado para ela em Arrakis — para ajudar um membro de sua ordem em um futuro distante, as Bene Gesserit há muito tempo (no futuro… estamos no futuro…) plantaram histórias de um messias para que pudessem mais tarde colocar em movimento eventos que cumprissem essas profecias… nossa, que complicado! Elas criam profecias de propósito, especificamente arquitetadas maquiavélicamente para serem cumpridas mais tarde por alguma sujeito — Paul! É por isso que, bem no início do filme, os nativos de Arrakis ficam eufóricos ao ver Paul pisar no planeta pela primeira vez. Eles estão esperando por Paul Atreides há anos porque a ordem religiosa das Bene Gesserit previu a tal chegada — Lisain Al-Gaib ( A voz do Mundo Exterior) eles repetem em coro!
O bacana da história é que lady Jéssica recebeu ordens para produzir uma filha Atreides. O plano era simples — promover o endocruzamento desta filha com Feyd-Rautha Harkonnen, sobrinho do barão gorducho Vladimir, sendo muito alta a probabilidade de nascer um tal Kwisatz Haderach dessa fortuita e antecipada união. Lady Jéssica resolve alterar por conta própria seu destino e ordens, dá a luz a Paul Atreides — porque ela é uma Bene Gesserit e faz o que deseja! Inverte a Lei da Ordem Religiosa e introduz uma variável inesperada na narrativa! Novamente, o Culto assim como no Judaismo é transmitido pelo ventre materno. E lady Jéssica faz mais, essencialmente fura o plano das Bene Gesserit que estão comprometidas com a eugenia para criar o Kwisatz Haderach!
Podemos até imaginar as Bene Gesserit como verdadeiras bruxas intergalácticas mas o que me fascina é exatamente essa possibilidade de pensarmos na evolução de nosso psiquismo e onde podemos chegar como seres… meta-humanos!
Metapsicologia em Arrakis!
Então Freud me vem à cabeça como de costume… ele inicia a metapsicologia de sua Psicanálise com a primeira tópica (Consciente, Pré-consciente e Inconsciente), proguide para uma versão 2.0 da metapsicologia com a sua segunda tópica (Ego, Supergo e Id) e hoje em dia até se fala de uma terceira tópica — que seria uma representação gráfica metafórica da heterogeneidade e coexistência de funcionamentos psíquicos inconscientes de estrutura representacional e não representacional, inclusive sob a éfigie do… sexual!
E por qual motivo se fala de uma terceira tópica? Pelo simples fato da certeza da plasticidade de nosso Inconsciente que atravessa o espaço-tempo que vivemos e porque os dois modelos freudianos são insuficientes para nos fornecer respostas mais adequadas ao objeto do psiquismo pertinente ao sujeito da clínica atual — o tal sujeito dos estados limite, por exemplo e como podemos dar conta dos sintomas de rompimento dos laços sociais e até virtuais!
Provavelmente essa terceira tópica permitiria nossa passagem de uma unidade subjetiva primordial para uma ampla unidade individual intrapsíquica — muito mais profunda e que vá de encontro ao tal falado SUJEITO DO METAVERSO! E quem sabe… chegaremos a uma quarta tópica, uma quinta… E nessa possível nova abrangência das tópicas futuras, nosso psiquismo estará muito além do que atualmente compreendemos ou imaginamos!
Na verdade, pouco importa se é tópica ou não, o interessante é que desde já seja um instrumental que nos permita pensar nas fronteiras do analisável e do inanalisável — pensar nos já mencionados estados limites ou dentro das problemáticas nárcisico-identitárias de um sujeito que não encontra seu lugar em relação aos outros, ou que outros falhem em se colocar em seu lugar ou ainda falhem em colocá-lo num lugar, problemáticas tão discutidas por René Roussillon! Este instrumental deverá dar conta de um sujeito que navega entre confusão, sensação e fusão — aquele insustentável no vazio e do caos! Muito além do Real lacaniano! Um instrumental para Paul Atreides, que necessita de análise “Depois da Guilda” — desde a relação fusional-religiosa com a sua mãe até sua compreensão e aceitação messiânica de ser o Kwisatz Haderach (nome dado pelas Bene Gesserit à incógnita para a qual elas procuram uma solução genética, a versão masculina de uma Bene Gesserit, cujos poderes mentais e orgânicos viriam a unir o espaço e tempo).
Uma litania interessante!
Lady Jessica e Paul recitam no filme de Villeneuve as mais famosas palavras de DUNA, a Litania das Bene Gesserit. A ideia dessa oração é que as tais treinadas da ordem religiosa possam modular suas respostas emocionais aos fatos diversos da vida incluindo aniquilação da dor física diante de perigos.
Faço aqui a transcrição de palavras dignas da parede de meu consultório — no mínimo colacarei na sala de espera e espero que analisandos possam ler estas palavras bem interconectadas! Deixarei lá dia destes emoldurada numa única tela!
“Não terei medo. O medo mata a mente. O medo é a pequena morte que leva à aniquilação total. Enfrentarei meu medo. Permitirei que passe por cima e através de mim. E, quando tiver passado, voltarei o olho interior para ver seu rastro. Onde o medo não estiver mais, nada haverá. Somente eu restarei.”

Essa Litania, transmitida por lady Jéssica é invocada por Paul Atreides quando coloca sua mão na caixa de dor para ser testado pela Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam.
Já para Freud — “Quando a dor de não estar vivendo for maior que o medo da mudança, a pessoa muda.” Será que Freud colocaria sua mão na caixa?
Paul Atreides mudará além do que ele espera na já anunciada Parte 2! Pois é, enquanto escrevia este texto recebo mensagens diretas no Twitter que sim, o filme continuará em outubro de 2023.