Desmistificando o Real
Metabolizando um conceito lacaniano através do filme "A Chegada" (2016)
Retornei ao Substack e solicito desculpas pela ausência. Não é muito fácil se dedicar à tantas coisas ao mesmo tempo mas... foi necessário um afastamento.
Como prometido nas redes sociais, nesta newsletter vou explicar um pouco do Real “de e em” Lacan através de um de meus filmes preferidos: “A Chegada”, de Denis Villeuneuve (2016).
Mas o que é esse Real afinal que tantos psicanalistas falam em discursos pelo Zoom e nos cursos ou eventos de Psicanálise? Vamos lá...
O Real é algo que não se simboliza...
Piorou? Não.
Vamos por partes então.
Caro leitor, imagine que o Real não se opõe apenas ao Imaginário, mas também se situa muito além do campo do Simbólico — além... muito além! Ele ultrapassa. E está sempre num mesmo lugar “além da compreensão” e portanto numa ausência e numa distância de simbolização. O Real é uma condição absoluta! Enquanto o Simbólico é uma composição de elementos diferenciados e chamados significantes, o Real é, em si mesmo, “indiferenciado”.
Existe um trabalho primoroso de um psicanalista chamado Michael Eigen, “Cabala e Psicanálise”. Nele existe uma passagem que exemplifica muito o que desejo explicar sobre o Real:
E Ein Sof? O inalcançável? O que esta além do alcance? Mais perto de vocês do que vocês estão. Talvez mais perto de vocês do que vocês jamais vão estar. A menos que vocês encontrem o segredo de suas identidades no Intocável Que Toca Vocês. Gostaria de dizer o Um Intocável, mas temo o inevitável, pego pelo presente da linguagem: seja Um ou zero, zerUm, contando que não pode ser contado. O tesouro da linguagem com suas dicas de tesouros para além das palavras sem palavras.
Que bela contextualização de Real não é? — “para além das palavras sem palavras”.
Continuando… É o Simbólico que introduz "um corte no Real" no e durante o processo de significação. Isso sim pode ocorrer no processo de análise, via transferência. Então, perceba claramente que "é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas no processo de vir a ser e tornar-se simbolizado”. Até aqui... bonito né? Mas vamos chegar lá juntos até o final da leitura.
Lacan vai relacionando gradativamente o Real com o conceito de “impossibilidade” e aqui reverbero “inalcançável”. O real é "o impossível", porque é impossível imaginar, impossível de integrar na ordem Simbólica e impossível de atingir de qualquer forma. Pelo menos se admitimos nossos limites linguísticos. Limites… E sabe porque é “o impossível”? Por que o real tem uma qualidade “traumática” por excelência no momento que nele entramos ou ele percebemos! E evitamos o trauma se podemos! Mas se somos surpreendidos pelo trauma… temos material para elaborar!
Entramos no âmbito da ficção-científica agora
Isso é o que ocorre no filme “A Chegada” (Arrival, 2016) no momento em que os “menires megalíticos alienígenas” aparecem em 12 áreas específicas da Terra. Traumático. Tudo para no planeta! Assumimos que são “naves espaciais” pois não temos como simbolizar de outra forma. Finalmente os alienígenas estão aqui, mas... não sabemos o que desejam nem como são.
O roteiro do filme é simples: após a chegada dos doze monólitos em formato abaulado, uma professora de linguística — Louise Banks — é abordada pelo Coronel Weber, um militar, que lhe apresenta uma gravação da língua alienígena e pede-lhe que a decifre para descobrir por que vieram ao nosso planeta uma vez que o contato já foi pré-estabelecido via militares terráqueos lógicamente em pânico. Por outro lado, as nações em todo o mundo tentam coordenar suas descobertas individuais com uma coalizão global a fim de compreender e decifrar o propósito da chegada dos menires espaciais (o que nunca ocorreria claro e se ocorresse, teria seu percalços, veja nossa situação na pandemia!). Trilha sonora originalíssima e cinematografia tétrica além de excelentes atuações e reviravoltas ajudam o filme a transmitir um suspense caprichado e assim já nos coloca na borda do que não simbolizamos... olha o Real pulando da tela!
Existe então uma angústia mundial conectada ao traumático e facilmente visível na ausência de respostas (por que eles não respondem para nós? O que eles desejam da gente? É uma invasão?). Questões que por sua vez nos remetem a um encontro que o tio Lacan definirá como o domínio “além do imaginário”— pois não cessamos de elocubrar! Aqui, toda nosso arsenal linguístico e todas as possibilidades de metabolização falham magistralmente — olha o traumático aqui condensado num objeto de ansiedade par excellence!
A linguista nos apresenta durante a narrativa um fato importantíssimo — “descobrimos que ela se tornou mãe apenas para experimentar uma adversidade: ver sua filha falecer”. Vamos experimentar o estranhamento da linguagem alienígena propiciar um luto futuro. Uma mensagem emocional cifrada?
Louise aguarda uma revelação conectada à visões de um futuro que ainda não entende ser “seu futuro”! Chave importante para se entender que a aquisição da nova linguagem alienígena, o contato com os tripulantes dos menires e a gravidade invertida na sala de contato propricia um deslocamento do futuro para o presente.
Assim, partindo de uma privação traumática de compreensão, o filme dá um excelente contorno de um encontro a partir de um Real, um “objeto linguístico de angústia incompreensível e não simbolizado” — que não pode ser elaborado de forma alguma no caso do filme por palavras que conhecemos. E como objetos não mediados por estarem além de nossa possibiliade de entendimento, as espaçonaves alienígenas e seus tripulantes convocam a colaboração de uma linguista que tentará uma “fissura simbólica” em sua linguagem — uma brecha para tradução, transcrição e transliteração. E não temos uma Pedra de Roseta como gabarito desta vez.
A própria linguagem dos visitantes é incomum, estranha, incrível, indecífrável de início. Parecem borras de café flutuantes numa bruma espessa, expelidas dos membros dos tais “heptapods” que assim como polvos e lulas expelem tinta negra (o autor da história, Ted Chiang, chama os aliens desta forma em seu livro “História da Sua Vida e e outros contos”, aliás o filme saiu deste conto, História da Sua Vida). A particularidade supreendente está no muito além da escrita e ainda na descoberta no final do filme quando nos surpreendemos que o que víamos eram membros de criaturas gentis e enormes, que emitiam estranhos sons guturais. E que bom que Denis Villeneuve nos mostra os gigantes no final e ainda conseguimos descobrir que a linguagem compartilhada pelos extra-terrestres é “algo que vamos precisar no futuro”. O que por uma lado piora o mistério e nos deixa na borda do Real!
De fato, ocorre uma “convulsão existencial” diante da certeza da chegada dos menires e dos gigantes gentis, que no entanto tem uma qualidade de traumático para a humanidade. Assim como a pandemia, a chegada do “aliens” e o compartilhamento da linguagem é um evento inacessível que evoca uma ambivalência psíquica. Essa ambivalência introduz uma função simbólica do famoso “não estamos sós”, e por outro lado uma resposta de aniquilamento da insuportabilidade da diferença agonizante diante do “Unheimlich” — por este motivo os militares querem eliminar a ameaça de algo que não é ameaça pela truculência. Esse encontro direto com a alteridade radical da Coisa — Das Ding freudiano mesmo —, introduz e nos coloca diante do espectro da morte. Os menires pela ótica da filosofia, são, coisas em si — as coisas que existem mas não podem ser experimentadas pelos seres humanos, pois não podem ser intuídas. Olha o Real aqui! A expressão é de origem kantiana. Em princípio, essa coisa em si é algo que existe por si própria, independentemente de o “sujeito” perceber sua existência, tornando-a um objeto embebido em insuportabilidade e angústia. Em Kant, o termo “númeno” (νοούμενoν) é usado para falar da coisa em si, isto é, da coisa em sua existência pura independentemente de qualquer representação.
Por coincidência, penso em 2001 de Kubrick e 2010. Nestes filmes temos monólitos também. Em outros livros, 2061 e 3001, Arthur C. Clarke até menciona o caráter extra-terreste dos catalisadores de inteligência que navegam pelo Universo. São fundadores de mundos. Estes misteriosos monólitos negros de 2001 compartilham um parentesco com os menires de “A Chegada”. São ameaçadores, desconhecidos e colocam em dúvida a nossa existência e nosso futuro.
Talvez o grande sucesso de muitos filmes com alienígenas seja a possibilidade de metabolização do traumático através do inesperado. O Real então tem a possibilidade de alterar o nosso rumo, mas... podemos de alguma forma criar uma fissura nesse Real, através da linguagem e unicamente usando a própria subjetividade. Louis de “A Chegada” compreende que terá que passar pela morte da filha que ainda não nasceu. E isso é de uma maestria na narrativa fundamentalmente profunda... pois já sabemos que ela não vai evitar o que virá. Assim como ao adquirirmos a linguagem alienígena não sabemos o motivo de um dia no futuro necessitarmos dela.
Outro fato importante, é quando Louise — que fala Mandarim — consegue no final do filme anteceder e evitar um cataclisma ao visualizar uma mensagem importante entre um general chinês e sua esposa. Novamente estamos numa fissura do Real, cheio de possibilidades. Mas para quem ainda não assistiu ao filme, vou parar por aqui para não dar tantos “spoilers”!
“Now I'm not so sure I believe in beginnings and endings. There are days that define your story beyond your life. Like the day they arrived.” — Louise Banks
Traduzindo para você caro leitor:
“Agora não tenho tanta certeza se acredito em começos e fins. Há dias que definem sua história além de sua vida. Como no dia em que eles chegaram.” — Louise Banks
“Arrival” — “A Chegada” (2016)
Espero ter esclarecido esse conceito importante para você caro leitor. Se você curtiu, deseja me escrever ou comentar algo sobre o texto entre em contato ou poste nos comentários! Obrigado.
Texto maravilhoso! De forma simples e objetiva me ajudou a entender o Real. Parabéns pela delicadeza em sua escrita...
What do you think of Meillassoux's "Contingency" as an absolute reality?