Escotomas psicanalíticos de uma leitura de "O HOMEM DOS RATOS"
Entre recortes de casos clínicos, "TOCs", roedores na literatura e no cinema...
Analisando: “Oi, estive num psiquiatra e fui diagnosticado com COT.”
Psicanalista: “Você quer dizer TOC?”
Analisando: “Sim… mas coloquei em ordem alfabética… COMO DEVE SER!”
Ahhhh… os obsessivos me interessam muito…
Piada antiga… mas nos serve tão bem não é?
Ernest Langer (não o Agildo Ribeiro com o Topo Gigio da foto acima), o fascinante homem que tem como sobrenome uma grande parte da palavra “anger” (raiva em inglês). O leitor já pensou nisso? É um dos casos mais interessantes de Freud em minha opinião.
Na França, temos a troca de uma letra no sobrenome de Ernest — lá, toda documentação e textos produzidos até hoje, usam Z ao invés de G: assim fica Ernest Lanzer. Mas usarei aqui com G. Vale salientar que no final do caso nas obras de Freud, tanto na Standard da Imago quanto na coleção da Cia. Das Letras, temos uma nota de rodapé final onde descobrimos que realmente era LanZer.
Indecisão e incerteza pavimentavam o caminho de Ernest. Não interessava se a ideação orbitava o cômico manuseio de dinheiro para pagar a dívida numa peripécia exagerada e cansativa do tal pince-nez, a dominante e constante procrastinação, a raiva e o amor dedicado ao pai falecido ou a ambivalente escolha matrimonial (casar-se com a mulher de classe média amada, Gisa, ou ceder ao desejo materno de bodas com a ‘endinheirada’ mas indesejada Saborsky) — Ernest estava sintomáticamente petrificado, afogado nas dúvidas infinitas do que de pior e catastrófico poderia ocorrer com as pessoas que ele amava, colado à sua neurose obsessiva ou assolado por um grave Transtorno Obsessivo Compulsivo. Vale salientar nesse caso o ambivalente exagero de Ernst no âmbito da raiva expressada a um objeto versus o amor dedicado a um universo ambivalente situado na antítese disso tudo — o amor objetal versus a raiva direcionada ao mesmo objeto nas relações desse “mito freudiano”.
Esse paciente era um masturbador mental de ideias dominado pela dúvida de seu amor e assolado pela dívida psíquica direcionada ao pai amado! Isso é importante pois dessa constante ideação ambivalente Ernest amplifica seus sintomas obsessivos entre o “fazer nada e nada fazer para se movimentar”.
“O Homem dos Ratos” está presente na clínica contemporânea através de sintomas muito comuns e exatamente nisso está a beleza de se ler Freud e correlacionar estes analisandos do passado com o que acontece no setting de hoje. Vale salientar que os sujeitos que surgem na clínica e fora dela usam o termo obsessivo de forma confusa e bem difrerente do significante psicanalítico freudiano — hoje ser obsessivo por algo está conectado a estar perdidamente apaixonado ou dedicado a um objeto, um trabalho, um hobby, uma carreira (já fui rotulado de ter uma obsessão por cinema e literatura).
Diante de um neurótico obsessivo já observo um “Roedor de Ideias – um Sujeito-Rato”. Tenho presenciado em minha clínica casos onde analisandos sentem-se superiores e magnânimos em muitos aspectos sociais enquanto de forma ambivalente queixam-se de vociferante inferioridade direcionada a outros objetos sombrios e avassaladores aos quais sempre lanço a questão — “Tem certeza que isso é desse tamanho todo?”. As respostas me trazem na minha escuta todos os fatores pouco vividos como realidade e muito fantasiados que permeiam a ambivalência amor e ódio do obsessivo… ad eternum. Diferentemente da Histeria onde a ideia e o afeto são recalcados juntos, na Neurose Obsessiva a ideia e o afeto não estão colados, a ideia não está recalcada e o afeto sofre deslocamento brutal e nesse descolamento temos a impossibilidade de ação resolutiva e de finalização de atos que se repetem… se repetem… se repetem sem fim, ecoando.
Ouço no divã queixas superticiosas, medos, anseios e até desejos de que seria muito bom ficar doente, acamado, sobreviver a algum acidente para algum sujeito ausente notar a transferência erótica do paciente! Sinto a “raiva brotar” do divã de forma pulsante, espasmódica! Ideias não recalcadas, afetos deslocados! Posso até me direcionar à escuta de outros sintomas obsessivos onde uma paciente me relatou checar se o portão da garagem estava fechado muitas vezes. Várias sessões depois descobrimos juntos que era medo, não de roubo do carro ou de ladrões e estupradores mas sim de que o ex-marido voltasse do trabalho e as longas discussões se iniciassem — era uma checagem para que ele não entrasse mais na casa (e o marido nem tem mais em seu poder as chaves).
Um escotoma, um ponto-cego básico que vejo na Psicanálise atual é a ausência de transferência no ensino de uma técnica bem utilizada óbviamente por Freud ao relatar seus casos, mas principalmente no “Homem dos Ratos”: estabelecer calma e vagarosamente nas sessões uma linha do tempo dos eventos cruciais da vida do paciente. Freud descreve durante o texto elementos que caracterizam traços ou pontos de inflexão onde tudo pode ou não tomar outros rumos. Exemplos: a morte do pai, quando Langer iniciou a petrificante dificuldade para trabalhar, um casamento arranjado pela mãe, uma mordida, fracasso em provas e outras possibilidades que se assemelham a auto-sabotagem tão comuns em neuróticos obsessivos e a já mencionada procrastinação e seus efeitos desviantes de foco ao que realmente interessava. Percebo na narração de Freud uma possibilidade que me inspira na clínica atual a perguntar ao paciente de forma simples: “onde você estava quando isso aconteceu? — o que sentiu nesse momento? — estava sozinho? — qual sua idade quando esse marcante evento ocorreu?” — dentre muitas outras configurações que podem através da livre associação desmontar o afeto obsessivo diminuindo assim o sofrimento do analisante num “desmonte ou sucateamento da ação ideativa”.
Não é um questionário proustiano patético e curioso, mas as respostas obtidas ajudam a configurarmos a linha do tempo da origem dos sintomas e violar o âmbito da anamnese. Se formos em algum momento escrever algo sobre o paciente é bom para registramos o andamento e mais tarde, com o aprimoramento da primazia do estilo clínico pessoal exercitamos a memória para pacientes futuros — sem escrever absolutamente nada.
Tenho um caso atual de “Sujeito-Rato” na clínica onde um garoto apavorado com a possibilidade de fazer intercâmbio resolve parar de estudar e de aluno exemplar passa ao pior da classe em um bimestre causando grande comoção familiar e na escola. Claro que demorei para descobrir o “medo de intercâmbio” verbalizado na livre-associação, mas o caso Ernest abriu minha escuta mais ainda quando percebo que a repetição deste fracasso assemelhava-se ao fato de Langer optar pela ação petrificante, pela solução de compromisso sintomática para não repetir o mesmo destino do pai Heinrich Langer em relação ao matrimônio — se Langer não terminar os estudos ele não se implica no matrimônio com Lizzie e assim vai “levitando” no vácuo obsessivo da procrastinação. Então, não vale à pena terminar de estudar para casar com quem não gosta ou para fazer o tal intercâmbio e ficar longe dos amigos da escola. A pergunta que lançei no ar numa das sessões para este paciente e que remodelou o destino da análise foi — “mas estes seus amigos da escola são para toda a vida e estão colados em você?” — sobreveio uma torrente de associações por 30 minutos e chegamos ao terror de sair do país sem um preparo psíquico prévio. Fato é que esse “Sujeito-Rato” não tem apenas estas manifestações obsessivas, existem outras mas a possibilidade de manter contato com amigos por redes sociais também acalmaram a incidência de acting-outs obsessivos.
Penso até numa banda de Möebius onde Langer percorre a passos curtos numa incessante e angustiante ideação sem fim proposital. É o antitempo do obsessivo situado entre o sofrer do “fazer mas não fazer” (mais um escotoma que não tinha percebido, só desvendando após detalhada leitura) criando a impossibilidade de resolução. Vale essa passagem de Green sobre o tempo para pensarmos juntos:
“É bem claro que é impossível falar da árvore do tempo em psicanálise sem levar em conta a de-sincronia entre os vários aspectos descritos por Freud, revelando uma heterocronia fundamental... Outras questões nos aguardam. Há o tempo, o fora do tempo e talvez, como veremos, o antitempo”. (GREEN, 2002)
Em relação a casamentos, não precisamos ir tão longe no passado para vermos que essa ideação simbólica sempre ocorreu onde os genitores tentam infuenciar os filhos nas opções matrimoniais através de profecias pré-comprovadas na qual um genitor suplica para que um filho ou filha não se casa com alguém pobre e não repita ou não herde sua tragédia pessoal. Até Machado de Assis em seu conto “O Segredo de Augusta” escreveu a máxima “… duro com duro não faz bom muro…” (aliás usada por mim para terminar um noivado destinado à infelicidade). Mais um escotoma básico que talvez só venha com a leitura reflexiva e profunda de Freud, e claro com a prática clínica: “a identificação da repetição involuntária até dos moldes comportamentais, sociais e econômicos familiares presos a uma neurose de destino”. E por “via de porre” às vezes repito a frase da atriz Vera Farmiga no filme Os Infiltrados de Martin Scorsese — “Change one thing and change everything” (“Mude uma coisa e mude todas as coisas”), para o analisando no divã ou na poltrona à minha frente. Mas o obsessivo não quer se livrar de sua dívida com os pais e talvez não perceba o movimento de recuo para o passado onde lá ficará “seguro na repetição”. Muitas vezes o sujeito nem mesmo um Psicanalista procura e assim, fica colado ao sofrimento!
Recentemente, numa entrevista ao programa Roda Viva, um jornalista perguntou para Contardo Calligaris se todo mundo precisava fazer terapia. A resposta foi interessante mas simples: “se está tudo bem entre você e seus pais, não precisa”. Contardo estava sinalizando que o neurótico adulto se encontra preso e imerso nas emoções, afetos e idéias inerentes ao tão estudado e importante “Complexo de Édipo”. Como psicanalistas, sabemos que durante este período que vai dos 3 aos 5 anos em média, a criança vivencia um turbilhão de emoções e desejos transgressores que gradualmente serão interditados com a inserção da criança na sociedade. Então, um exemplo concreto deste desejo transgressor reside no fato de que a criança pequena quer ter a mãe só pra si e se compraz com a ausência do pai, desejando seu afastamento e sua não existência, porventura uma aniquilação. Freud, por sua vez, declara que:
"desta época em diante (se referindo a puberdade), o sujeito tem a grande tarefa de desvincular-se dos pais e, enquanto essa tarefa não for cumprida, ele não pode deixar de ser uma criança para se tornar membro da comunidade social". (Freud, Vol. XVI, pág 393).
E Ernest tem uma grande dívida com seu pai morto, Ernest tem grande dívida vincular com sua mãe viva, Ernest tem uma grande dívida sádica com sua sexualidade, Ernest tem gigantesca dívida com suas ruminações que brotam do inconsciente. Freud tinha em mãos a gênese de uma estrutura única — a Neurose Obsessiva.
Gosto da palavra escotoma pois é exatamente nos ponto-cegos que muitas oportunidades surgem na análise. Acho que Freud nos apresenta muitos nos seus textos. São eles as notas de rodapés? Seriam eles comparáveis aos famosos “easter-eggs” dos DVDs e Blue-Rays de filmes ondem ampliamos a experiência cinematográfica? Acredito que sim. Nada mais prazeroso que desvendar estes pontos obscuros e cegos no além da dúvida, na releitura constante de Freud e observar que diante da prática clínica, a maestria privada da teoria ajuda na interpretação, na intervenção, na supervisão e claro na transferência e escuta!
E no reforço dos escotamas psicanalíticos que vou desvendando em meus estudos de aprimoramento da escuta, me vem uma frase enigmática e que me movimenta:
“Por que o sofrimento de cada dia se traduz constantemente em nossos sonhos, na cena sempre repetida (negrito meu) da narração que os outros não escutam?” Primo Levi. (É isto um homem?, 1988 p.60)
Eu escuto, sou psicanalista.
“Sujeito-Rato”, jogando!
Durante a leitura do caso “O Homem dos Ratos” posso sentir o jogo ambivalente de forças às quais deliberadamente nomeio aqui como “Jogo Subjetivo do Ying-Yang”. O neurótico obsessivo no momento da psicanálise contemporânea chega com este comportamento ambivalente ao verbalizar fatos como esse na minha clínica:
“um outro ‘Sujeito-Rato” teve um grande amigo de infância promovido na empresa para uma vaga que acreditava ser sem sombra de dúvida sua. Enciumado, ele criou uma conta de email num provedor diferente e enviava emails ameaçadores para o amigo solicitando que pedisse demissão do cargo novo, caso contrário algo fatídico aconteceria com a esposa e filhos. Perversamente, ele enviava emails de um tablet e aguardava a expressão perturbadora do amigo já no cargo numa sala estilo aquário. Ele se deliciava ao ver as caretas assustadas do amigo que tomou atitudes através da incompetente TI da empresa mas não chegou ao IP do autor. Semanas se seguiram e meu obsessivo/perverso tem momentos de arrependimento e admoestação. O rapaz de cargo superior pede licença mas não comunica o motivo. O analisando descobre por fofoca que a esposa do amigo estava doente. Ocupado em suas atividades no trabalho somadas ao assédio por email e ciúmes, o ‘Sujeito-Rato” se esqueceu de continuar o bom network com o promovido e claro colocar o amor fraternal acima da cobiça e inveja regredida. Culpa, remorso e o medo sintomático obsessivo de ser revelado pela TI fizeram o Sujeito-Rato contatar o amigo e ajudar o casal exageradamente de muitas formas a passar pelo problema. A conta de emails foi deletada e o assédio cessou mas não sem antes o amigo comentar o que tinha passado com o estranho terrorismo”.
Era exatamente este tipo de comportamento que Langer tinha quando pequenino e queria ver as moças nuas mas com medo de represália paterna desejava a morte de Heinrich castrador e simultaneamente tinha medo da onipotência do seu pensamento e criava medidas protetivas direcionadas ao seu pai. Todo medo, todo pavor… encobre um desejo não é mesmo? No fundo… queremos que o RUIM aconteça à uma pessoa invejada, e talvez amada por simples ação de um superego assassino que prefere nos aniquilar antes de degolarmos o amante que nos traiu ou o chefe que nos desrespeitou na frente da equipe. Sabemos pelo relato de Ernest que seu pai exagerava nas surras, especialmente nas nádegas — “muito ódio nesse coração pequenino não é?”. Enfim, este “Jogo Subjetivo do Ying-Yang” o pequeno Ernest já executava inconscientemente com maestria num sofrimento masoquista/sádico — sofro mas farei sofrer quem odeio, não posso fazer sofrer quem amo… que é a mesma pessoa que odeio…
Em relação a estes jogos do desejo que criamos e óbviamente jogos neuróticos obsessivos, François Dagognet tem uma bela passagem em seu livro Faces Surfaces e Interfaces (Paris, Vrin, 1982, pg.91) que gostaria de transcrever em totalidade:
“Chegaremos ao ponto de considerar o sujeito uma miragem? De jeito nenhum. Mas nasce com o homem um corpo até então desconhecido, porque os movimentos reais e violentos, perigosos também, são substituídos pelo esboço dos possíveis. A evolução dos gestos instintuais, a moderação da impulsividade ávida acaba abrindo caminho para a virtualidade, que por sua vez gera a onda da subjetividade. Correlativamente, as necessidades punitivas cedem lugar para os jogos mais elaborados e parcialmente interiorizados do desejo”.
Neste belo caso, percebo em minhas leituras que as fases anal, oral e genital raramente vem acompanhadas de descritivos de conflitos com os genitores tão facilmente visíveis. Mais um escotoma freudiano em minha leitura que vou percebendo à medida que leio e releio Freud. Explico — sempre me parece que os estágios ou fases são apresentadas como únicas e sem a ampliação do que realmente pode fundar mais traumas e suas conexões. Pais que impedem filhos de se masturbarem ou exercerem algum tipo de sensualidade, o afastamento prematuro do aleitamento materno, a insistência em ensinar a criança a ser o “estagiário fecal” que tudo sabe sobre asseio e limpeza anal. É como se a criança estivesse sempre à mercê do desejo dos genitores. Sob a ótica ferencziana é como se a ideia parental fosse produzir um sujeito politraumatizado que desenvolverá um teratoma sintomático em breve sob a obediência do nome-do-pai! Por outro lado, Lacan me satisfaz mais ao eliminar meus escotomas freudianos e no Seminário VIII enfatizou a complexidade traumatizante da relação entre pais e filhos no que concerne às fases oral e anal muito além de Freud. Aliás não passamos por isso já? …Saia do banho rapaz; já fez a lição?; como assim não gosta de futebol?; ele não desgruda do celular…; não mexa no “bilau”… Jouissance proibida meu caro!
Na ratoeira tinham outros escotomas: sadismo, masoquismo, a história dos ratos e… canibalismo!
Tenho estudado a possibilidade de regressão egóica para o sadismo oral, canibalismo e masoquismo em adultos que passaram por experiências traumáticas quando crianças. E claro, sexualizar uma experiência traumática torna-a mais palatável e aceitável para o psiquismo do sujeito. Estamos predestinados a repetir ativamente aquilo que sofremos passivamente no passado. E nem precisamos ler todo o Semináro XI de Lacan para poder adentrar nos quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (inconsciente, repetição, transferência e pulsão) no momento que compreedemos esse afloramento da repetição na vida do sujeito — seja como um sintoma histérico ou mesmo um sintoma neurótico obsessivo, no caso deste texto. Imagino que se o sujeto apanhou dos genitores como Langer quando pequeno, pode até ser que goste de um tapinha quando adulto na vida sexual. A tal palmada também erotiza e chama a atenção para as nádegas. A vulnerabilidade anal e das áreas pudendas e outras experiências conduzem o sujeito à uma tendência pela busca de experiências supra-estimuladas. “Que prazer é esse que tive quando cirança que não ocorre mais?”. Os impulsos sexuais agressivos também não estão longe dos impulsos eróticos amorosos. No caso dos fetichistas, masoquistas e sadomasoquistas estão sobrepostos em minha interpretação. Enfim, não posso deixar de mencionar os mecanismos de defesa que o sujeito desenvolve diante da castração eminente para lidar com a realidade. Exatamente neste ponto volto a 1909 e examino a cultura da época.
Existia um livro aterrorizante muito comentado: O Jardim da Tortura, de Octave Mirbeau (foto abaixo). Este livro contém a descrição da histórica tortura dos ratos verbalizada pelo capitão sádico. Publicado em Paris em 1899 este livro adquiriu uma espécie de notoriedade pornográfica. Para mais informações sobre Mirbeau, visite o https://www.societe-octave-mirbeau.org/
O tal jardim fica na China, o torturador é um chinês sádico, a vítima um sujeito desconhecido e a heroína “obcecada” por tortura e detalhes mórbidos chama-se Clara. A tal tortura do rato devorador que entra pelo reto está descrita com grande detalhe nas páginas desta obra. Muito provavelmente, esse erotismo anal e claro, este estímulo sádico presente no “Homem dos Ratos” teve seu fator precipitativo não só pelas variações da voz do capitão sádico mas também da forma que Langer ouviu o relato impressionante — o rato com seus dentes afiados, desesperado para fugir do ferro incandescente que entra por um orifício no vaso virado sobre o ânus da vítima, tenta fugir e descobre que o único caminho é pelas entranhas da vítima (note que o rato também é torturado e reage violenta e instintualmente para fugir do ferro em brasa). Um coito anal?
O rato é canibal, come seus semelhantes com seus dentes poderosos e que não param de crescer. Na literatura mundial, cobras, lobos, ursos, piranhas, aranhas, baratas, vampiros, lobisomens e até a esfinge edipiana são ameaças devoradoras! O termo camundongo já foi usado no passado para designar a criatura peluda e dentuça com o rabo asqueroso, mas curiosamente, as línguas européias só adotaram a palavra RATO (que veio do latin rodere — i.e. consumir e misturou-se com radona em Sâncscrito — i.e. dente) muito depois. E o momento de adoção da palavra RATO só ocorreu durante os seculos 12 e 13 quado o “rato preto” invadiu a Europa vindo da Ásia e exterminou os outros ratos deixando no lugar a Peste Negra e outras pragas medievais. Por um golpe genético, já no século 18 o rato marrom, ou Mus norvegicus, destronou e destruiu o rato preto dos “anais” das pragas européias, quase em sua totalidade populacional! É interessante notar que a humanidade e a “ratolândia” tem traços similares se pensarmos na competitividade e destrutividade tão abertamente demonstrada. O rato é um símbolo do mal, da promiscuidade, da voracidade e asco. Num dos filmes da franquia 007, Skyfall, o vilão Silva (Javier Barden) conta para o 007 com perversão e detalhes mórbidos uma cena onde ratos competem pela sobreviviência num paralelo vívido e sanguinário digno de guerras.
Os ratos atacam pessoas sozinhas ou em rataria (coletivo), são absurdamente fecundos e rapidamente perde-se o controle populacional destes ratinhos caso o homem não interfira dizimando-os quando possível! E conto mais novidades: as doenças transmitidas pela passagem destes roedores pelo mundo afora nos últimos 5 mil anos mataram mais pessoas do que as guerras ocorridas neste mesmo período (W. Barquer, Familiar Animals of America). Estas criaturas atacam os seus famliares da mesma forma que atacamos nossos semelhantes. Uma curiosidade mórbida: se deixarmos um casal de ratos numa ilha deserta, mesmo com poucas condições de sobrevivência num prazo de quatro anos teremos uma ilha com quase 20 milhões de roedores. Não desejo provocar asco no leitor deste texto, então, retorno ao caso freudiano…
Langer chegou a Freud perturbado por comportamentos obsessivos que tiveram início quando ele estava no exército e tem contato com a narração sádica do Capitão N. como já vimos, incluíndo um criativo e peripatético ritual de pagamento de uma dívida. De acordo com Freud no caso, os ratos estão conectados ao erotismo anal — sujeira, fezes, doenças venéreas, crueldade, violência, sadismo, canibalismo, mordiscar e arrisco promiscuidade sexual. A erogeneidade da neurose obsessiva de Langer é tipicamente anal mas a libido é sádica e oral. Outro escotoma desvendado é que Langer de alguma forma simbólica enxerga o rato da impressionante cena da tortura como um pênis que no coito anal pode causar prazer e dor sádica no torturado. O rato é um pênis destruidor, com doenças e dentes dilacerantes. Langer, portador de um pênis com pouco uso, já foi um rato também quando mordeu um conhecido e foi repreendido pelo pai-castrador que mais tarde foi atacado em sua cova por um rato devorador. De certa forma, nós psicanalistas também podemos morder o ego dos analisandos propositalmente ou inadvertidamente, provocando o fim de uma sessão. E se somos lacanianos e trabalhamos com tempo lógico, provavelmente mordemos e deixamos marcas!
Outra obra de interessante impacto, 1984 de George Orwell, usa a imago dos ratos num peculiar momento de tortura. Orwell com maestria escancara o sentimento do sujeito torturado, por meio da narrativa literária. O trecho transcrito em sua totalidade retrata o momento em que o protagonista do livro, um tal “subversivo”, é levado à sala 101, para sucumbir perante ao sistema autoritário e ditatorial. Muito além da tortura, esta passagem do livro evidencia o terror psicológico e a perda da subjetividade e dignidade do torturado, obrigado a abrir mão de sua individualidade para se tornar um mero fantoche nas mãos dos torturadores… e dos ratos… no livro, ratazanas!
“O’Brien apanhou a gaiola e trouxe-a para a mesa mais próxima. Colocou-a cuidadosamente sobre o feltro verde. Winston podia ouvir o sangue tinindo nas orelhas. Tinha a impressão de estar na mais absoluta solitude. Encontrava-se no meio de uma vasta planície erma, um deserto plano banhado de sol, e os sons lhe chegavam de grandes distâncias. No entanto, a gaiola dos ratos não estava senão a dois metros dele. Eram ratazanas enormes. Tinham a idade em que ficam com o focinho rombudo e o pelo pardo, em vez de cinzento.
– O rato – disse O’Brien, ainda se dirigindo à plateia invisível – embora roedor, é carnívoro. Bem o sabes. Ouviste falar das coisas que acontecem nos bairros pobres desta cidade. Em algumas ruas, uma mulher não ousa deixar o filhinho em casa, por cinco minutos que seja. É seguro que os ratos o ataquem. Dentro de muitíssimo pouco tempo devoram tudo, só deixam ossos. Também atacam pessoas doentes, e moribundos. Demonstram espantosa inteligência, descobrindo quando um ser humano está indefeso.
Houve uns guinchos na gaiola. Pareceram a Winston vir de muito longe. Os ratos estavam brigando; tentavam atacar-se através da divisão de arame. Ouviu também um fundo gemido de desespero, que também pareceu vir de fora.
O’Brien ergueu a gaiola e, ao fazê-lo, comprimiu algo. Ouviu-se um estalido. Winston fez um esforço frenético para se livrar da cadeira. Inútil, pois todo o seu corpo, inclusive a cabeça, estavam firmemente presos, imobilizados. O’Brien aproximou a gaiola. Estava a menos de um metro do rosto de Winston.
– Apertei a primeira alavanca – disse O’Brien. – Compreendes a construção desta gaiola. A máscara adapta-se à tua cabeça, sem deixar saída. Quando eu apertar esta outra alavanca, a porta da gaiola correrá. Os monstros famintos saltarão por ela como balas. Já viste um rato pular no ar? Pularão sobre teu rosto e começarão a devorá-lo. Às vezes, atacam primeiro os olhos. As vezes abrem caminho pelas bochechas e devoram a língua.
A gaiola estava mais próxima; cada vez mais. Winston ouviu uma série de guinchos agudos que pareciam vir de cima, de sobre sua cabeça. Mas lutou furiosamente contra o pânico. Pensar, pensar, mesmo que lhe restasse uma fração de segundo – pensar para a única esperança. De repente o fedor mofado dos brutos atingiu-lhe as narinas.
Dentro dele houve uma violenta convulsão de náusea e quase perdeu os sentidos. Tudo enegrecera. Por um instante, sentiu-se louco, um animal a gritar. […] O círculo da máscara era suficientemente grande para tapar a visão de tudo mais. A porta de arame estava a alguns palmos do seu rosto. Os ratos sabiam o que ia acontecer. Um deles dava pulos no ar e o outro, um escamoso veterano dos esgotos, se levantou, com as patas rosadas nas grades, fungando ferozmente. Winston pôde ver os bigodes e os dentes amarelos. De novo o pânico negro o possuiu. Estava cego, indefeso, insano.
– Um castigo comum na China imperial – disse O’Brien, mais pedagogicamente do que nunca. A máscara se aproximava. O arame tocou-lhe o rosto. E então…”
Imagino se Langer tivesse sobrevivido para ler a obra de Orwell talvez tivesse novos sintomas e formas de defesa. Pobre Ernest e suas desconexões entre ideias e afetos! E finalizando, esta desconexão entre ideia e afeto evidenciada por Freud no caso — que é um dos mecanismos na Neurose Obsessiva — está muito bem explicada aqui nesta pasagem da obra freudiana:
“Não pode haver dúvida de que o paciente sentia uma necessidade de encontrar experiências desse tipo, que atuassem como esteios de suas superstições, e de que foi em virtude disso que ele tanto se ocupou em observar as inexplicáveis coincidências da vida quotidiana com as quais estamos todos familiarizados, utilizando sua própria atividade inconsciente quando estas não bastavam. Já deparei com uma idêntica necessidade em muitos outros pacientes obsessivos, suspeitando-a também em muitos outros mais além desses. Parece-me facilmente explicável, em face das características psicológicas da neurose obsessiva. Nesse distúrbio, conforme já expliquei, a repressão não se efetua por meio da amnésia, mas sim mediante a ruptura de conexões causais (meu negrito) devidas a uma retirada de afeto. Essas conexões reprimidas parecem persistir em algum tipo de configuração muito vaga (que eu, em outro lugar, comparei a uma percepção endopsíquica), sendo, por um processo de projeção, assim transferidas para o mundo externo, onde dão testemunho daquilo que foi apagado da consciência”. (Freud, Vol.X. pg 201 ES).
E assim nascem… e persistem na clínica atual, os pensamentos intermitentes do neurótico obsessivo.
Bibliografia
Assoun, Paul-Laurent. Dictionnaire des Oeuvres Psychanalytiques, PUF, 2009.
DAGOGNET, FRANÇOIS. Faces Surfaces e Interfaces, Vrin, 1982,
DEJOURS , CHRISTOPHE. Primeiro, o corpo. Dublinense, 2019
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1996 Volumes X e XVI
GREEN, A. Le temps éclaté . Paris: Editions de Minuit, 2002.
LEVI, PRIMO. É isto um homem? — Obras completas, Liveright; Slp edition, 2015.
ORWELL, GEORGE, 1984 (edição publicada pela Cia. das Letras).