Lacan, fui com sua cara mas voltei para devolver!
Metabolizando novas possibilidades do Estádio do Espelho via Fantasma de Pepper
Dia 13 de abril Lacan fez 120 anos. Sim, ele já faleceu! É apenas uma data. Mas decidi fazer uma homenagem ao mestre!
Tenho grande apreço pelo texto — O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. Neste novo post e claro, nessa nova newsletter para assinantes este texto de Lacan será explorado como um “mapa ilustrado pessoal e de análise crítica”. Será ampliado via o Fantasma de Pepper. Faço uma breve analogia com uma memória de uma atração num parque de diversões, para divertir o leitor, e claro, fazer pensar comigo!
Lacan oferece uma tridimensionalidade em seus textos. Explico... sempre aconselho a todos aos leitores e colegas psicanalistas: perda de tempo apenas ler e erotizar — “bora” metabolizar, criar e elocubrar! Os inúmeros textos, “Os 25 Seminários”, “Escritos” e “Outros Escritos” oferecem ao leitor a necessidade de aprofundamento pessoal — precisamos entrar e sair da obra várias vezes, pesquisar, ler outros autores, beber de outras fontes diversas (filmes, documentários, outros psicanalistas... e são tantas as possibilidades!). Se entramos e saímos do papel impresso lacaniano, saímos ampliados como psicanalistas (se assim desejamos) ou no mínimo, mais cultos. A leitura se desdobra em nós! Isso é muito bonito... pois a literatura lacaniana é “ampliação de significantes”. Pense nisso caro leitor!
Vamos finalmente à conseqüência lacaniana, onde eu leitor e autor, posso colocar algo de mim? Aprofundamento pleno na constituição do sujeito, identificação do sofrimento e certitude na finalidade da análise são componedores de minha armadura virtual como psicanalista à partir de Lacan. Durante o texto, lanço “Intermezzi”, como intervalos. Me imagino contando algo diferente para amigos numa mesa de bar, tomando um bom e encorpado Bordeaux, vagarosamente, como a leitura dos textos de Lacan deve ser. Enfim, tem conteúdo em cada “Intermezzo”. E convido à reflexão.
“Primo Intermezzo” – Numa livraria
São Paulo, 08 de outubro de 2017. “Setting” – Livraria da Vila da Fradique Coutinho. Procuro por Seminários de Lacan. Tenho preferência pelo objeto livro. Pergunto à vendedora. Ela me informa que eles ficam numa estante no caixa. Dirijo-me ao caixa (com outras aquisições nas mãos como de costume). Solicito saber onde estão os seminários, e o atendente permite minha entrada na “ilha do caixa” para escolher os livros de Lacan disponíveis para venda atrás de outros volumes incógnitos. Seminários escondidos! Escolho o “18 – de um discurso que não fosse semblante”, e claro pergunto o motivo de tanto “ex-conderijo”. A resposta é engraçada!
“Virou moda Lacan e as pessoas estão roubando os livros dele... antes roubavam os livros de Freud. Pararam... agora roubam Lacan! São livros caros... estamos de olho! São roubados também, porque muitas vezes são vendidos por preços mais convidativos na web.”
Quem diria não é? Vamos em frente…
Etapa 1 – SUJEITO (S) e o outro (a) - “Primórdios ou o Fantasma de Pepper”
Se você viveu em São Paulo nos anos 70 e 80, provavelmente já foi ao Playcenter e até tenha entrado na atração MONGA, onde uma garota de biquini se transforma em gorila diante dos olhos de uma pateta e infantilizada platéia estarrecida!
Esse experimento de física óptica era reproduzido em parques de diversão e feiras do século passado e tem esse nome pois na época a ilusão era baseada num fantasma que surgia exatamente no lugar de um pianista. Em algum momento, alguém teve outra idéia mítica e trocou a entidade etérea fantasma por algo mais ameaçador! Começo por aqui o mapa da compreensão, pois diante do nomeado Sujeito Lacaniano (S) que é a “moça”, temos inúmeras pulsões que a estabelecem frente ao Lacaniano outro (a). Esse outro, vai catexizar, na cara da platéia estarrecida a pobre moça num gorila! Ela será construída por identificações, por imagens, por traços do outro. O efeito usado para isso, chama-se o Fantasma de Pepper.

Essa técnica de prestidigitação nada mais é que um jogo de duas salas escuras e entre elas há um vidro polido, que funcionará como espelho. As salas estão justapostas perpendicularmente — em geral. Entre as salas existe o vidro colocado exatamente a 45º. As duas salas precisam ser negras ou cobertas de material escuro. Nós só podemos ver uma sala, pois a outra está atrás de uma parede escura do proscenium onde só o reflexo do que está na sala escondida será visto na superfície plana. Essa outra sala tem um “dublê” fantasiado de gorila no escuro (no caso da MONGA). Uma luz muito forte direcionada sobre à mulher faz com que vejamos de início a garota de biquíni. Veja o esquema abaixo.
Etapa 2 – SUJEITO (S) e a passagem para al - “Angustia na platéia”
Existe um narrador, que criará todo um “mis-en-scéne”, um verdadeiro “setting” de horror. Conforme a luz da sala 1 começa a diminuir de intensidade, a luz na sala 2, que a platéia não vê começa a aumentar na mesma intensidade. As palavras do narrador são uma mixórdia grotesca de aventura na selva cheia de simbolismos onde provavelmente a bela moça está possuída por alguma entidade paranormal da mata, foi mordida por alguma criatura ou é mesmo uma deusa do mal. Através dessa regulagem da luminosidade dos dois ambientes, pode-se ver da platéia o gorila aparecendo na mesma velocidade que a imagem e presença da moça vai sumindo. Essa imagem do gorila está na verdade na reflexão do vidro. Gosto deste exemplo, pois é como se a moça incorporasse traços, imagens de outra pessoa, no caso, a criatura gorila. E não é assim que fazemos no mundo real que vivemos? Não é desta forma que Lacan nos demonstra no Estádio do Espelho? Quando nos transformamos, nos construímos, admiramos, vemos, desejamos, falamos, estamos adquirindo traços do outro. Podem ser traços constituintes de um amigo, de uma pessoa querida, e claro... descendo ao cerne do Estádio do Espelho, não somos “o desejo do desejo da mãe”? Se lêmos um livro, absorvemos traços... se amamos alguém, absorvemos traços. Resumindo... pela matemática Lacaniana, é como se o “S” copiasse o “a” e se transformasse no aI , que ainda não é o “EU”. Vamos chegar lá! Falta algo PRIMORDIAL! Falta algo simbólico forte, determinante e poderoso...
“Secondo Intermezzo” – “Cells interlinked”
O filme cult no cinema de Denis Villeneuve — Blade Runner 2049 — usa passagem de Nabokov, “Pale Fire” ressaltada num questionário padrão de detecção de trauma via inteligência artificial sobre a intersecção de amor, livre-arbítrio e manipulação. O “replicante” é re-constituído em sua ex-istência através do recomponedor lingüístico e literário que é um teste de padronização (Baseline Recalibration Test) — “TU ÉS REPLICANTE?”. Se ocorre algum desvio ou resposta alterada com emoção característica de humanos, o replicante é “Sujeito barrado” e deve ser aniquilado ou “retired” (aposentado) que também quer dizer “ex-tinto”! O Sujeito Replicante não pode estar constituído, ele apenas é espelho do desejo do outro, mas nada pode “escapar” quando o sujeito é atravessado em sua artificialidade pela linguagem. O sujeito artificial precisa ter comportamento linear e dentro da padronização de obediência!
Aqui está a passagem usada no filme:
“Cells interlinked within cells interlinked
Within one stem. And dreadfully distinct
Against the dark, a tall white fountain played.”
Muito além disso, faço o intermezzo para refletir e reforçar sobre “a linguagem que nos atravessa”, e nos constitui, sobre os significantes da linguagem que solidificam no filme o replicante que têm código genético fabricado e cincidido por seus criadores humanos. No filme, o lema é “ser mais humano que humano”, pois apenas humano, é Sujeito com Inconsciente, Pré-consciente e Consciente... com Ego, Superego e Id e portanto... recalca e sofre. Replicantes não sofrem, apenas obedecem. Lacan reforça o poder da linguagem em tantos textos, somos atravessados por tantas linguagens diversas não é verdade?
Etapa 3 – al redimensionado ao EU - “TU ÉS GORILA!!!”
Pronto, chegamos a um momento importante. Agora, o narrador declara que finalmente a garota é MONGA, a gorila. A luz viajou de um meio para outro, uma parte foi refletida e outra transmitida na interface de vidro plano a 45º entre as duas salas. A sala onde está a moça é breu sepulcral. A sala do gorila, tem luz forte projetada sobre a fera peluda. A platéia foi enganada! Mas não sabe! Bastou a matriz simbólica da linguagem ecoar na sala para termos a confirmação, inclusive nossa, que a moça... está e é a macaca, literalmente! O Outro, que não vem à nossa frente sem a linguagem, engendra o EU com a “confirmação”. No caso EU macaca! Claro que agora, a criatura peluda assume a cena! As palavras do Outro constroem ilusão. Muitas vezes o jogo de luz estroboscópica torna imperceptível aos olhos da platéia a abertura da sala e surgimento da gorila urrando no palco. Diante da ameaça, a platéia foge aos berros pela porta de emergência. Eu particularmente “adorava” ver o pânico do público. O narrador pede calma, ordena o retorno da criatura a uma das salas e vagarosamente a gorila passa pela re-transformação humana! A moça será cindida em humano. O Outro vai FURANDO as característica da gorila, as simiescas partes vão se transformando, a capa humana vai ressurgindo, é como se agora, a moça castrada e seu Inconsciente, apos a experiência mítica da transformação animal, se constituísse no “S barrado” pela influência da linguagem e pela própria experiência da transformação simbólica. A moça está diferente agora! Ela carrega a experiência da transformação e re-composição. Ela não é a mesma de antes. Alienação! Reconstrução. A gorila é uma ficção, ou uma fixão lacaniana?
Fui com sua cara Sr.Lacan... mas voltei para devolver uma idéia levemente diferente, uma refexão de sua proposta. Que sonho poder dizer um dia ao Monsieur Jacques-Marie um “merci por ser enigmático e tão instigante”. Que pretensão a minha! Mas se escrever sobre psicanálise me sublima... “tá valendo!” Afinal, Lacan propõe em sua obra reflexão! Citando um passagem do Seminário 18 – “Refletir, isso lhes acontece. Acontece principalmente para lhes perguntar que diabo estou fazendo. Há que acreditar que isso deve lhes dar prazer, no nível do mais-de-gozar que os pressiona.”
Essas construções imaginárias que engendramos via o “Outro do outro” precisa ser furada na análise, na clínica. Inventamos esse ego para nós, essa couraça imaginária que nos escraviza e se repete. Resumindo — “Eu tenho uma noção do eu, e EU completo o outro. Meu Inconsciente é um efeito da construção do EU! Mas, “algo sempre escapa” via linguagem do Outro. Sou agora “Sujeito barrado”, o Sujeito que está com algo escapando, e continuo trocando traços com o outro, fantasiando... vivendo”.
Chistes à parte, agora entro em algumas ideias “lacanudas”, pois como me propus no início do texto, vou passar para o leitor minha compreensão do Estágio do Espelho como a “pedra fundadora do ego” e o Complexo de Édipo.
Nesse momento, quando Lacan fala de espelhismo, miragem, precisamos visualizar o estágio dialético primordial entre mãe e filho. É uma fase pré-edipiana, onde o filho como sujeito descobre seu ego, “que provém do outro”. A identidade da criança está refletida na mãe e, a criança é o “desejo do desejo” quando quer ser desejada pela mãe. Um pouco depois, sim, existe tempo nessa relação diádica, aparecerá o “Outro”, função do pai lingüístico. Esse Outro, rompe essa ligação primária, narcisista e imaginária entre mãe e filho. O filho, sujeito à ordem simbólica aceita o “falo” como significante. Aqui está o Édipo em sua essência, “hic et nunc” (aqui e agora).
Lacan não parou por aí e distinguiu três etapas no complexo de Édipo. Na primeira etapa, o pai é um irmão rival que pretende ocupar o espaço narcísico que a criança ocupa, e o sujeito responde com emoções — agressividade e ciúmes. Facilmente visível. Na segunda etapa — à “grosso-modo”, o pai entra como superego castrador. Essa fase para Lacan é importantíssima e claro, para os analistas. E na terceira etapa, com castração implantada – ou seja, fascinação especular furada, rompida – a “lei do pai” facilita à criança de forma permissiva a identificação e acesso à ordem simbólica. Essa identificação fica desconectada do superego, saindo do Eu Ideal para o Ideal do Eu. Chegamos à “Metáfora Paterna” de Lacan! Nesse momento, o leitor poderá me acompanhar e relativizar a mudança de relação entre pai e filhos onde o falo é substituído por um significante e o sujeito, submerso na ordem simbólica, aceita o valor do falo como significante primordial! Lacan retornando à Freud, analiticamente, é palpável em seus seminários.
Lacan também foi com a cara de Freud... mas voltou para devolver complementos e interpretações que auxiliam a compreensão dos textos do vienense genial! Lacan, influenciado por Kojéve, pela Gestalt e por Hegel nos mostra uma teoria de engendramento egóico com o Estádio do Espelho. E nesse estádio, seja através de sua exploração profunda da “L’Optique et photométrie dites geometrique” de Bouasse adicionado à “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache”, que “lacaniamos” o momento psíquico em que se instala no Sujeito a natureza narcísica e alienante do EU. Com Bouasse e Lagache, temos o esquema óptico do espelho côncavo e a ilusão de vaso de flores. Adicionando um espelho como Outro (ou A de Autre), Lacan nos demonstra visualmente como o neurótico introjeta o imaginário com espelho plano intocado e como o psicótico digere o imaginário à partir de um espelhismo fragmentado! Através do meu chiste da MONGA me concentrei no esquema L, mas o esquema de Bouasse e de Lagache está dentro do esquema L.
“Terzo Intermezzo” ou “Grand Finale” – Pontalis em Veneza.
Existe um livro do Pontalis, “Le Dormeur Éveillé”, de 2004 com um pequeno recital chamado L’autre barque. Para minha surpresa, Pontalis conta que toda vez que viajava para Veneza, passava pelo cemitério pitoresco da Ilha de San Michele. Partindo da Fondamenta Nuove, seguia de vaporetto à ilha. Nas linhas desse recital, Pontalis nos conta o quanto a Ilha cemitério o fazia lembrar do quadro de Arnold Böcklin, a Ilha dos Mortos. Essa obra fez grande sucesso para o artista e entre 1880 e 1886, Arnold fez cinco versões dela. Eu adoro esse quadro desde “moleque” quando vi numa revista de arte francesa em São Paulo.
Para Pontalis, o pintor, além de dar forma à morte num quadro, também nos passa a idéia através de décadas que a morte é um sonho. Por coincidência, Freud tinha uma reprodução da Ilha dos Mortos de Böcklin em seu escritório (e menciona o simbolista, incluindo esse quadro, várias vezes em seus textos). Clemenceu, Lenin e Hiltler também (este último, imagino, tinha um dos originais com certeza). Quando Pontalis se remetia ao quadro, ele compara a ilha real, localizada há algumas centenas de metros de Veneza com a ilha fantasmática — que apesar do nome que fornece ao quadro, pode muito bem ser uma tétrica entrada para algo maior. Um concentrado de túmulos e mortos, tão perto de uma cidade tão viva, só alcançável por barcos. Mas o motivo desta obra estar aqui discutida é para mostrar ao leitor que o espelhismo “está nos constituindo em todos os lugares”. Muitos artistas se espelharam no outro, no caso Böcklin, e criaram suas versões modificadas, furadas, descontínuas.
Interpretar a transferência, “não é outra coisa que encher com um espelhismo o vazio desse ponto morto” já dizia Lacan. A partir desse ponto morto que é a tela branca, vi artistas criarem obras baseadas no quadro de Böcklin. Exemplifico aqui nas duas obras de Hans Ruedi Giger o tema em dois quadros similares e incluo ainda uma cena do filme de Ridley Scott – Alien: Covenant onde técnicas de efeitos especiais trazem aos cinemas um cantinho da pintura de Arnold.
O significante do quadro constitui o “Moi” artista. Posso até imaginar que Giger viu o quadro de Arnold através de sua própria percepção estruturada pelo espelhismo. É uma transformação de energia Hegeliana à qual Lacan tanto menciona em seus textos... aquele real, que é racional… mas não se simboliza! Sobre o Real em Lacan… em breve escreverei sobre ele! Aguardem.