A série Severance ou Ruptura, dirigida pelo genial Ben Stiller, me inspirou para oferecer a você leitor uma análise através dos conceitos da clínica de Jacques Lacan, especialmente no que diz respeito aos conceitos que muita gente sofre para deserotizar! A trama engenhosa de Ruptura gira em torno de funcionários de uma corporação chamada LUMON que passam por um procedimento de "severance" (ruptura), que divide suas memórias entre o ambiente de trabalho (innie) e a vida pessoal (outie). Essa divisão ou cisão pode ser interpretada à luz de vários conceitos lacanianos, como o Real, o Simbólico e o Imaginário, além da noção preciosa de falta e desejo. Vamos lá?
Começando pelo que mais gosto em Lacan — O Real, o Simbólico e o Imaginário
Em Ruptura, o Real pode ser associado ao evento traumático da separação imposta pelo procedimento nomeado como severance. Os funcionários então não têm acesso às suas memórias completas, o que cria uma lacuna, uma cisão em sua experiência subjetiva. Agora temos duas experiências emocionais que não foram simbolizadas, elucidadas! Essa lacuna é uma manifestação do Real, algo que não pode ser simbolizado ou integrado plenamente à consciência dos innies e muito menos na nossa — que não entendemos o motivo da necessidade dessa ruptura. O Real está também na mineração de dados. O refinamento de dados é o processo de remover impurezas dos dados e reorganizá-los em categorias. Os refinadores de macrodados são responsáveis por esta tarefa estranha.
Como funciona?
Os refinadores são escolhidos com base em sua intuição, foco e acuidade emocional Eles classificam os conjuntos de dados em categorias com base em como os fazem sentir o abstrato . As categorias são baseadas em quatro emoções: estranheza, brincadeira, pavor e malícia. Espera-se que os refinadores classifiquem os dados de forma rápida, eficiente e confiável! Eles não são informados intencionalmente de nada sobre o verdadeiro significado dos números — olha o Real aqui!
O que os dados representam?
Arquivos de macrodados não refinados são mares de números e aparentemente intermináveis — têm nomes como “Tumwater”, “Culpepper”, “Dranesville” e “Cairns” .
Os arquivos de dados podem representar algo mais do que apenas números, como emoções, memórias ou até mesmo pessoas mas… para qual objetivo? Mistério!
O ambiente de trabalho na LUMON Industries opera dentro de uma ordem simbólica rígida, existem regras, hierarquias e rituais patéticos (incluíndo dança, comidinhas low-carb) que estruturam a realidade do dia-a-dia dos innies. O Simbólico aqui é representado pela linguagem corporativa, livros, manuais, as políticas da empresa e as normas duras e estranhas que governam, direcionam o comportamento dos funcionários. Ou seja uma estrutura linguística onde ocorre integração humana, subjetiva. No entanto, essa ordem simbólica é incompleta, pois exclui a experiência pessoal dos outies, criando mais uma cisão na subjetividade de cada um!
A identidade dos innies é construída a partir de uma imagem fragmentada de si mesmos, já que não têm acesso às suas memórias pessoais. Essa identidade é, portanto, imaginária, baseada em uma ilusão de completude que é constantemente desafiada pelas lacunas em sua experiência. Além do angustiante não saber o motivo real do trabalho que eles executam! Fica novamente o mistério e para os fans da série um vasto campo na web para testar teorias conspiratórias fazendo a gente participar do Imaginário geral! O jogo constante entre RSI é o tempero da série e o que coloca cada sujeito cindido em armadilhas surreais!
Onde está o desejo que estava aqui?
Para o tio Lacan o sujeito é marcado por uma constitutiva falta, essa FALTA é a fonte princeps do nosso desejo. Em Ruptura, essa falta situa-se na divisão entre as memórias ou traços mnêmicos do trabalho e traços mnêmicos pessoais. Ou seja… innies desejam saber quem são fora do trabalho, enquanto os outies podem desejar entender o que acontece dentro da enigmática empresa. Essa dualidade dinâmica e antagônica de desejo é central para a trama, já que os personagens estão constantemente em busca de uma completude que lhes é negada mas… foi aceita por contrato pelo outie.
O Outro (a) e o Grande Outro (A)
A LUMON Industries pode ser vista como uma encarnação do “Grande Outro” lacaniano, uma instância simbólica que dita as regras e normas que os funcionários devem seguir. O Grande Outro é uma figura de autoridade que estrutura a realidade dos personagens, mas que também é opressiva e alienante. A empresa controla não apenas o comportamento dos funcionários, mas também suas memórias e identidades, reforçando a ideia de que o sujeito é sempre dividido e alienado em relação a si mesmo. É impossivel não pensar no 1984 de George Orwell, afinal temos grandes outros que fazem a LUMON perdurar — a alta hierarquia — Harmony Cobel e Seth Milchick. E sempre reforçando… para quais objetivos? Esse REAL nõa cança de se inscrever numa implicação misteriosa!
A Cisão, a RUPTURA!… do Sujeito barrado e castrado
A tal cisão entre innie e outie em minha humilde interpretação reflete a cisão do sujeito barrado/castrado em Lacan, que é dividido entre o consciente e o inconsciente, entre o desejo e a lei, entre o eu ideal e o ideal do eu. Essa divisão é resultado da repressão do gozo dentro da LUMON e da internalização da Lei Simbólica já explicada aqui — resultado disso tudo: estruturação do psiquismo do sujeito exclusivo SEVERED para a LUMON. Os innies representam uma parte do sujeito que é consciente apenas de sua vida no trabalho, enquanto os outies representam a parte que vive fora desse contexto. A castração simbólica implica que o sujeito reconheça a ausência de um “objeto primordial de satisfação plena” e a impossibilidade de completar-se ou de encontrar um objeto que o satisfaça por completo. Olha que profundo leitor! Essa falta estrutural é inerente à nossa condição humana e é o que impulsiona o sujeito a buscar objetos de desejo ao longo de sua vida e experiências emocionais. Devido à falta… o innie busca seu outie!
A compreensão da castração simbólica é fundamental na clínica lacaniana. Ela permite entender a angústia, o desejo e a falta que estruturam a experiência subjetiva.
Ao reconhecer a castração, o sujeito innie deveria se libertar de ilusões de completude e de identificações imaginárias, abrindo-se para novas possibilidades de ser e de se relacionar com o mundo corporativo. É exatamente nesse desconforto que as rebeliões na LUMON começam a eclodir! Tem algo do e no sujeito cindido que não vai bem!
O Objeto “a” causa do desejo
O objeto a em Lacan é o objeto do desejo, aquilo que falta e que motiva o sujeito a buscar a completude, é aquilo que era e não é mais… aquilo que já foi, mas sua ausência incomoda! Na série o objeto a pode ser visto como a tal memória perdida, aquilo que os personagens desejam recuperar para se sentirem completos num matema OUTIE + INNIE = SUJEITO TOTAL CASTRADO. No entanto, como na teoria lacaniana, esse objeto é inatingível, pois a completude é uma ilusão — afinal ao se completarem não serão mas os mesmos pois foram modificados pela LUMON e acontecimentos da narrativa!
A tal alienação e a separação
Os personagens estão alienados em relação a si mesmos como innies e à LUMON, mas há momentos em que tentam romper com essa alienação, buscando recuperar suas memórias e entender sua verdadeira identidade — incluindo uma tentativa de suicídio na temporada 1! Lacan nos implica numa alienação do sujeito dentro da ordem simbólica e a possibilidade de separação, RUPTURA… que é um momento de descolamento com essa alienação corporativa. Esses momentos de projeção de uma separação são importantes para o desenvolvimento da trama e para a condução dos incidentes entre os personagens.
T
enho um paciente que adora a série e imagina que quando dormimos somos outies…
e quando acordamos somos innies… e quando nos lembramos de sonhos ou seus fragmentos estamos em contato com verdades de um possível multiverso onde existe uma punitiva hierarquia que nos comanda por aqui! Teoria interessante!
Que texto! Muito bom, adorei! Obrigada por compartilhar!