O INFAMILIAR [DAS UNHEIMLICHE] de Grande Sertão: Veredas
Uma conexão contratransferêncial inesperada em homenagem ao grande escritor João Guimarães Rosa e sua obra máxima
Preâmbulo
Após a leitura e estudo do texto na nova versão publicada pela editora Autêntica – “O INFAMILIAR [DAS UNHEIMLICHE] – Obras Incompletas de Sigmund Freud” em 2019, pretendo neste post trazer todo o INFAMILIAR possível de ser interpretado via análise freudiana, por “via de porre” ou “por via de levare” em uma obra de grande impacto pessoal — o romance Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa (abaixo na foto de David Zingg).
Parte 1 — Breve Estudo Estrutural e Sintaxe em DAS UNHEIMLICHE
O objetivo e examinar a escrita em suas essência.
a) Sobre o Título
A palavra em alemão usado por Freud no título já apresenta reflexões particulares e a priori misteriosas. DAS UNHEIMLICHE corresponde à antítese em alemão de tudo que é caseiro (HEIMLICH) com a adição do prefixo UN (oposição). Freud adiciona o UN como possibilidade de “recalque” de algo que é familiar. Vemos então um mecanismo de defesa no sujeito que reprime o insuportável, o indescritível, o estranho, o inaceitável, o infamiliar. Precisamente o que a escrita atemporal de Freud propõe é a demonstração semântica interna fechada neste termo — DAS UNHEIMLICHE — e sua desconstrução, onde através de um inquérito lexográfico nos conduz à aprofundamento de outro texto paralelo de sua autoria (Sobre o sentido antitético das palavras primitivas, 1910). Tal texto, pode ser procedido da leitura do DAS UNHEIMLICHE e este título, por sua vez anuncia que e o texto se concentrará exatamente na COISA infamiliar. A palavra em si, seu significado RAIZ, será resgatada como arqueologia do léxico, re-interpretada pela engenhosa demonstração per “via de levare” da escrita freudiana. Enfim, a longa reflexão semântica do título nos favorece a entrar no âmbito do sujeito, da palavra e da coisa com boa base estrutural — então adentramos naquilo que é próprio “da” e “na” Psicanálise — o universo da bela teoria sobre a subjetividade humana de Freud. Vamos encontrar ainda nas obras de Freud na França a utilização do termo “L’INQUIÉTANTE ÉTRANGETÉ”, uma perífrase por culpa exclusiva da iniciativa de Marie Bonaparte onde uma única palavra em alemão foi trocada por duas em francês, um substantivo e um adjetivo — é o mínimo circunlóquio que Bonaparte usou para realmente expressar a infamiliaridade em sua essência! O resultado dessa mudança assemelha-se aos nomes de filmes que são modificados com o intuito de atrair maior público, não é mesmo? Não obstante, veremos também no mesmo volume da nova tradução A NEGAÇÃO [DIE VERNEINUNG, 1925], via similar fênomeno léxico freudiano: uma escanção analítica da palavra do título.
b) Uma Gênese da ideia do texto DAS UNHEIMLICHE
Na seção II deste ensaio, Freud faz notar generosamente que em TOTEM E TABU ele já examinara esse estranhamento, a infamiliaridade, ao mencionar pensamentos onipotentes e o animismo. Freud ainda reforça numa carta a Ferenczi (datada de 12 de maio de 1919) que decidiu retomar a análise do termo, “para nossa sorte!”. Até Karl Abraham demonstra entusiasmo sobre o material lido em DAS UMHEIMLICHE quando escreve numa carta de 19 de outubro de 1919 para Freud sua opinião, a seguir transcrita — “Ainda uma palavra sobre o objeto de seu último ensaio! Estou verdadeiramente entusiasmado. Tenho a impressão que, nunca antes, você tinha penetrado assim, tão profundamente num devido problema. E com isso, a apresentação é tão maravilhosamente humilde e clara que sua leitura é um prazer intelectual e estético de primeira”. Freud vaidoso, publicou o texto para nossa apreciação.
c) Um contexto
Vale notar que em 1919 Freud também publicou uma nota sobre “E.T.A . Hoffman e a função da consciência” (Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse) que constitui uma citação dos Elixires do Diabo (obra aliás muito solicitada no texto DAS UNHEIMLICHE) onde a “consciência” é comparada a um cobrador de impostos, encarregado do controle comercial de mercadorias (intuímos aqui o Super Eu). Óbviamente, Hoffman foi explorado em sua essência no DAS UMLEICHE pela interpretação psicanalítica do conto “O Homem da Areia”.
d) Uma estrutura simples
Assim como em suas duas tópicas metapsicológicas, Freud desenvolveu o belo texto DAS UNHEIMLICHE em 3 seções numeradas de I a III, sem subtítulos ou divisões. Impossível não pensar no tripé psicanalítico – teoria, análise e supervisão.
e) Uma tese
De onde viria no sujeito o (re)vivido, o experimentado da infamiliaridade em sua plasticidade no inconsciente? Ele nasce na realidade da vida quotidiana enquanto complexos infantis recalcados são reanimados por impressões externas ao sujeito ou quando convicções e ideias primoridias já superadas na vida do sujeito são novamente confirmadas ou revividas.
f) Um argumento
O início do texto é a ocasião para Freud ressaltar a estranheza da psicanálise às pesquisas estéticas até que algum fenômeno faça um belo sinal à experiência analítica. Freud afirma que:
“O psicanalista apenas raramente se sente estimulado a investigações estéticas, mesmo que ele não restrinja a estética à doutrina do belo, mas a descreva como a doutrina das qualidades do nosso sentir”.
Na época de Freud o familiar em exposições de estética eram preferencialmte o belo, o grandioso, o atraente, os sentimentos positivos e objetos com as “boas vibrações” e não os que evocam os sentimentos contraditórios, repugnantes e demasiadamente penosos na observação e introjecão pelo sujeito.
Exatamente na seção I, o DAS UNHEIMLICHE é abordado como um lugar negligenciado pela literatura o que chama a atenção da psicanálise sobre a questão do exame deste fenômeno “meta-estético”. Algo está em falta nesse lugar! Buscando esclarecimento, Freud lança-se numa descrição lexográfica do termo infamiliar. Menciona também a Hipótese de Jentsch — a incertitude intelectual, a sensibilidade ao infamiliar assim como sua tolerância é encontrada em diferentes graus nos sujeitos, o que nos conduz à comprovação de diferentes singularidades.
Já na seção II, Freud nos mostra o método de trabalho de exploração do infamiliar através da sondagem da palavra “unheimliche” e o recalcamento das coisas que nos causam sentimento de infamiliaridade e assim deduzir-se características comuns ao que causa inquietação, estranhamento e desconforto. Freud chega à primeira definição de DAS UNHEIMLICHE: “algo amedrontador que se conecta às coisas conhecidas depois de muito tempo e em algum momento foram familiares”. Disso sai importante questão: “quais são as condições que fazem coisas familares tornarem-se estranhamente infamiliares?”. Aqui, finalmente Freud testa a Hipótese de Jentsch (já mencionada) onde uma impressão desconcertante é testada à partir de pessoas, coisas, eventos e situações suscetíveis que tem a força e clareza de despertar o sentimento de infamiliaridade no sujeito. Dúvida sobre os vivos e os mortos, o tema do “Döppelganger” (uma pessoa duplicada e idêntica em função paralela ou sobrenatural), magia, encantamentos, repetições pulsionais involuntárias, a inveja via o tal olho-gordo e a morte propriamente dita.
Na seção III, após Freud traçar uma comparação de UNHEIMLICHE na literatura e na vida real ele avança em sua tese determinante:
“o infamiliar da vivência existe quando complexos infantis recalcados são revividos por meio de uma impressão ou quando crenças primitivas superadas parecem novamente confirmadas”.
Podemos demonstrar e rever a técnica “genial” de Freud no DAS UNHEIMLICHE onde Freud parte da semântica e lexicologia (seção I), passa por extensão psicológica (seção II) e emite um diagnóstico sob a análise de processos inconscientes (seção III).
g) Avanços conceituais na teoria de Freud
O DAS UNHEIMLICHE é em minha opinião um belo ponto de inflexão da teoria psicanalítica que Freud desenvolvia. Podemos ler e compreender que o RECALCAMENTO e seus mecanismos são representados e descritos assim como seu retorno como sintoma. Ou seja, Freud demonstra o retorno do recalcado ao mundo real vivido de uma forma peculiar, com um sentimento de ESTRANHAMENTO fantasioso e/ou fantasiado. Nesse sintoma, temos uma convicção de algo já vivido pelo EGO. Ao examinarmos o fenômeno do UNHEIMLICHE podemos reconhecer a supremacia da COMPULSÃO À REPETIÇÃO (provenientes das movimentações pulsionais e dependentes da natureza mais íntima das pulsões com poder para se submeter sob o princípio do prazer). Nester mesmo texto, Spaltung ou clivagem do EGO é utilizado pela primeira vez. Essa clivagem é o corte, Entzweiung, no EGO, onde a divisão do que fica manifestado no EGO sobressai sobre o que restou e foi recalcado.
h) Um aporte clínico relevante
Ao isolar o INFAMILIAR para uma esfera de fenômeno psíquico no EGO, Freud contribui para aportes muito claros à teoria do recalcamento e ao examinar através da linguagem literária um “ponto cego” achado pela psicanálise, Freud mais uma vez nos fornece documentação sobre a teoria da subjetividade humana e arrisco, de sua própria subjetividade. Extamente nestas surpresas está o prazer de se ler Freud.
Parte 2 — O INFAMILIAR [DAS UNHEIMLICHE] em Grande Sertão:Veredas
“Grande Sertão: Veredas” (João Guimarães Rosa) e “Dom Casmurro” (Machado de Assis) são duas obras que causaram grande impacto — infamiliaridade — em minha juventude. Delas surgiram duas dúvidas — sobre a articulação da homossexualidade de Riobaldo e a traição na vida conjugal de Bentinho. Neste trabalho, concentro-me em “Grande Sertão: Veredas”. Uma nova leitura de “Grande Sertão: Veredas” foi necessária para novas conclusões e me surpreendi com o grau de análise subjetiva pessoal como psicanalista. A visão da subjetividade se ampliou! Existe escuta psicanalítica pessoal.
• Uma micro “anamnese” sobre o livro, faz-se necessária.
Durante a primeira parte da obra, o narrador em primeira pessoa narra sua vida. Riobaldo faz um relato de fatos diversos desde sua juventude pré-jagunço e aparentemente desconexos entre si, que versam sobre suas muitas inquietações sobre a vida, ambivalências entre o bem e o mal, Deus e o Diabo. É uma prosa bastante caótica e conheço muitos leitores que de imediato, sentindo uma certa infamiliaridade com essa estrutura desistem da leitura. Se um incauto leitor procura linearidade num enredo, aqui não encontra nas primeiras páginas que não oferecem adesibilidade — elas não seguram o leitor comum. Riobaldo rememora seu passado e conta sobre sua mãe e como conheceu o destemido menino Reinaldo quando ainda eram jovens, em uma travessia do Rio São Francisco. Nessa ocasião, essa personagem já vivia disfarçada de menino, e assim declarava ser “diferente” — a corporificação do DAS UNHEIMLICHE, sob minha livre interpretação. Muito mais adiante na narrativa, já podemos compreender que Riobaldo estabelece uma conexão com um certo onipotente destino desde o encontro juvenil. Exatamente aqui, nesse contato com esse garoto que era garota, temos uma traço mnêmico que terá forte retorno! Após o falecimento da mãe, Riobaldo passa a viver com seu padrinho na fazenda São Gregório. Conhece Joca Ramiro, grande chefe dos jagunços. Seu padrinho, Selorico Mendes, coloca-o para estudar e após um tempo Riobaldo começa a lecionar para Zé Bebelo, um fazendeiro da região. Pouco tempo depois, Zé Bebelo, convida Riobaldo para fazer parte de seu bando que precisava por fim na atuação dos jagunços pela região. Quando Riobaldo amadurece como jagunço, é batizado de Tatarana, que significa “lagarta de fogo”, uma homenagem à sua exímia pontaria.
Assim começa a história da primeira guerra narrada em GSV — o bando de Hermógenes contra o bando de Zé Bebelo e os soldados do governo. Riobaldo desertou do bando de Zé Bebelo e finalmente encontra Reinaldo, que faz parte do bando de Joca Ramiro. Reinaldo é então o motivo pelo qual Riobaldo juntou-se a este grupo de jagunços por familiaridade.
A beleza da amizade entre Riobaldo e Reinaldo se fortaleceu e Reinaldo o confidencia um novo nome: Diadorim. Ocorre outra batalha entre o bando de Zé Bebelo e o bando de Joca Ramiro. Zé Bebelo foi capturado e julgado pelo tribunal dos jagunços chefiado por Joca Ramiro. Após o julgamento, Riobaldo e Reinaldo juntam-se ao bando de Titão Passos. Riobaldo tem um caso amoroso com uma prostituta chamada Nhorinhá e, depois com Otacília, por quem se apaixonou. Diadorim, demonstra ciúmes e durante uma discussão com Riobaldo, ameaçou-o com um punhal. Existe amor e desejo em Diadorim.
Os jagunços se reúnem para mais uma batalha, organizada sob novas lideranças: de um lado Hermógenes, que é a personificação do mal para Riobaldo e Ricardão, de outro, os jagunços de Zé Bebelo. Nesta batalha Hermógenes e Ricardão assassinam Joca Ramiro.
Riobaldo entrega uma pedra de topázio a Diadorim, que simboliza a união entre os dois, mas esse recusa dizendo que devem esperar o fim da batalha. Essa pedra é importante pois desloca-se na narrativa como objeto de oferenda matrimonial e simboliza compromisso. Quando o grupo de Zé Bebelo chega às Veredas-Mortas, Riobaldo faz um pacto com o Diabo para que possam vencer o bando de Hermógenes, e assim recebe mais um nome — Urutu-Branco — e assume a chefia do bando. Riobaldo pede para um jagunço entregar a pedra de topázio à Otacília, o que firma o compromisso equivocado de casamento entre os dois.
O bando liderado por Urutu-Branco procura Hermógenes, chegando até sua fazenda já em terras baianas. Não o encontrando, retornam para Minas Gerais. Num primeiro momento, acham o bando de Ricardão e Urutu-Branco o mata. Por fim, encontram o grupo de Hermógenes no Paredão e há uma grande e sangrenta batalha final. Diadorim enfrenta Hermógenes em confronto direto e ambos morrem. Nas últimas páginas o narrador Riobaldo conta que depois da morte de Diadorim, no momento que o corpo é despido e lavado, descobre-se que Reginaldo/Diadorim era uma mulher — é a filha de Joca Ramiro e chama-se Maria Deodorina da Fé Bittancourt Marins. Reginaldo/Diadorim é uma personagem-chave do romance e desempenha façanhas disfarçada de homem jagunço durante quase todos os atos nos quais essa função faz-se necessária. A história gira em torno de Riobaldo apaixonar-se profundamente pelo jagunço Diadorim, o que provoca nele uma movimentação infamiliar em seu EGO, com vários sentimentos contraditórios que emergem e submergem pelo mecanismo de recalque, pois uma paixão homossexual era uma relação impossível de ser aceita no meio jagunço e uma grande DAS UNHEIMLICHE.
• PSICANALISANDO
Considerado uma das grandes obras da nossa literatura, “Grande Sertão: Veredas” (1956), inicialmente chama atenção por sua presença física: são mais de 600 páginas de experimentalismo modernista literário e linguístico sem quaisquer sinais de capítulos. Já temos na forma estrutural, uma certa anormalidade — uma contraposição entre um volume “biblionormótico” versus um volume “biblioneurótico”. É uma obra inovadora onde o vivido e fantasiado tecem relações muito complexas e infamiliares na riqueza da linguagem utilizada em suas inúmeras metáforas e metonímias. Inversão de posições, instabilidades e reversabilidades (do moral ao político, de sexual ao metafísico — onde Riobaldo descreve a possibilidade de estar enganado no âmbito do claro engodo sexual) ocorrem com frequência nas páginas do livro o que demostra um desconcerto infamiliar na vida narrada das personagens. Um romance escrito com a linguagem do duplo — onde podemos identificar dois planos de escrita: um subjetivo composto das numerosas indagações de Riobaldo e outro narrativo própriamente dito onde as coisas acontecem e são contadas de forma que o leitor ao procurar um enredo encontra uma “desorientação” inevitável.
Aprecio muito uma declaração de João Guimarães Rosa encontrada numa obra sobre a correspondência com seu tradutor para a língua italiana, Edoardo Bizzarri, onde Rosa explana seu processo de criação (principalmente do livro de sete novelas “Corpo de Baile”), a prática da invenção de neologismos, rememora pessoas que o inspiraram a criar as personagens e que favorece mais ainda o estranhamento dos leitores ao se aprofundar nas páginas do romance e de seus contos:
“Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se estivesse ‘traduzindo’, de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no ‘plano das idéias’, dos arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando nessa ‘tradução’. Assim, quando me retraduzem para um outro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o Tradutor quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do ‘original ideal’, que eu desvirtuara...” (Bizzarri, 2003, p.99)
Ou seja, penso que o estranhamento, a infamiliaridade, a tal desorientação é aplicada de forma intencional! É um jogo literário poderoso para o leitor onde necessita-se de desprendimento aos possíveis costumes de leitura de cada sujeito. Esse desvirtuamento da tradução existente alhures, faz parte do primado do estilo literário de Rosa. E nas páginas desse romance, Rosa nos presenteia com uma tapeçaria pulsante de vida mortal, sexual e real entrecortada pelo sobrenatural na aridez deste sertão!
Existe um código particular exposto pelo narrador constituído pelo tempo da memória que ele nos empresta via palavra: sua coleção de traços mnêmicos, passados pelo dito e escrito como livre associação no “setting do sertão”. Seguem passagens que anunciam que estamos no reino da memória, e nela, o tempo é coadjuvante desprezado, numa incerta linearidade:
“A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.” (p.92).
“Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.” (p. 172).
Riobaldo recorda, repete e elabora com fala caudalosa suas lutas, dúvidas, pavores e esse “certo amor anormal” recalcado por outro jagunço, Diadorim. Neste sertão, Riobaldo não se cansa de “SER-TÃO” neurótico obsessivo com EROS e tão violento com PATHOS à flor da alma. Riobaldo nos entrega o ouro do bandido no final da narrativa e nos faz ter vontade de reler a obra (pela terceira vez) pois sinto que ele precisa negar sua homossexualidade dizendo que Diadorim era finalmente mulher! A impressão que se tem é como se num final de um bom filme a trama fantásmica do desfecho retornasse às cenas que não percebemos o quão eram fundamentais e nos conduziram ao grand-finale infamiliar (exemplo — aos descobrirmos que o personagem principal de “O Sexto Sentido” de M. Night. Shyamalan — estava morto desde o começo do filme ajudando um jovem garoto paranormal).
O nome Diadorim é examinado profundamente numa obra chamada “O Mundo Movente de Guimarães Rosa”, de José Carlos Garbuglio e compartilho com você leitor uma bela passagem. Para ele é possível admirtir-se a hipótese da decriptação do nome DIADORIM e não acho impossível Guimarães Rosa ter articulado algo assim —
— “…admitimos a hipótese de dia + doron, ou através + dádiva, dom, o que não exclui a possibilidade de outras significaçoes como di (dois) + adorar, ou o duplo adorado, ou ainda diá (através) + dor + in, ou por intermédio da dor, do sofrimento; por outro lado, diá é também a primeira sílaba de diabo, ou ainda dia (claro, dia) + dor + in (neste caso in é sufixo indeterminante do gênero e, portanto, índice da natureza indefinida de Diadorim)”.
Chegamos através de “quase matemas” à natureza indefinida de Diadorim – é jagunço mas é mulher, é “döppelganger” — é duplo, carrega dois sexos, o atuado e o da realidade. É paixão de Riobaldo, mas está no papel de jagunço. E nessa decriptação, elevo Guimarães Rosa a um estágio literário do incomum. Será mesmo que existiu um grande jogo de significantes na mente do autor? Gosto de acreditar que sim.
Adentrando na paixão infamiliar entre dois jagunços supostamente do mesmo sexo percebe-se que ela é abastecida pela estranheza do sentimento entre eles e muitas vezes por quem lê, pelo desconforto da exposição da dúvida, pela castração do amor proibido pelos jagunços que usam a guerra para manter a paz! E a habilidade de Rosa está aqui quando nos conduz à “dúvida da dúvida” — Riobaldo sabe ou não sabe que Diadorim é o Reinaldo que encontrou às margens do Rio São Francisco quando pequeno, Riobaldo está tentando me enganar como leitor ou se enganar? O que está retornando agora? Qual recalcado? Temos aqui uma certa homoafetividade? Temos um deslocamento de objeto de investimento sexual? O autor brinca conosco através de Riobaldo e “me faz” chegar à conclusão que “sim”, na minha leitura e na minha escuta ‑— Riobaldo tece uma experiância homoafetiva não atuada, baseada no desejo, uma amor infantil de proporções épicas. Também me desloco para usar o termo “uma certa homo-afetividade” pulsante em nosso narrador. Por dois motivos: se escrevesse homossexualidade sentiria-me patologizando o texto, e ao usar homoafetividade sinto-me erotizando minha escrita no âmbito do desejo (além da palavra composta com derivado de “afeto”).
Não se engane leitor pela prosa de Riobaldo tentando se justificar ao amar um homem dizendo que sua intuição a priori nunca o enganou — para ele Diadorim “é” mulher! Veja a cultura machista e violenta na qual Riobado estava inserido. Jagunço pode ser gay? Pode sim, mas não pode demonstrar. É risco de quebra de código! Mas, usando a adversativa tão comum na fala de Riobado, reparo sempre que temos um sofrimento sem precedentes desse “moço sofrido” registrado em muitas páginas de narrativa lutando contra seu objeto de investimento sexual. Riobaldo está numa longa sessão psicanálitica com suas livres associações. Riobaldo solicita várias vezes para um certo senhor “organizá-lo”. É uma demanda por análise? Perplexidades do jagunço espelhadas nas páginas, um Riobaldo varado de dúvidas onde até as lembranças são um desconforto da infamiliaridade com seus sentimentos e sintomas — um tamanho estorvo que incomada e inquieta — me faz escutar um bom analisando desinibido mergulhado na regra fundamental! E ainda Riobaldo nos conduz a um segredo mantido por Diadorim, que será comprovado no final do livro, quando o infamiliar torna-se familiar e Diadorim surge DEFINITIVAMENTE como mulher. “Pôxa… o rapaz era donzela!”. Retificação subjetiva ou “point de capiton” lacaniano? Vejam que alívio para Riobaldo confirmar que o jagunço de belas feições que ele amou não era homem. Então ele pode fazer um retorno de sua história nos dois planos narrativos e talvez tentar nos enganar que sabia que Diadorim era mulher. E que belo DAS UNHEIMLICHE me encontro agora supondo essa possibilidade ambivalente que pode negar minha desconfianca. É um estranhamento inquietante terminar um livro e se achar vinculado ao destino dos personagens quase lendo o inconsciente de Riobaldo. São tantos pensamentos desse personagem que tentam enganar o incauto leitor – veja um exemplo marcante de negação seguido de ambivalência na sequência:
“Nego que gosto de você, no mal. Gosto, mas só como amigo!... Assaz mesmo me disse. De por diante, acostumei a me dizer isso sempre vezes, quando perto de Diadorim eu estava. E eu mesmo acreditei. Ah, meu senhor! – como se o obedecer do amor não fosse sempre o contrário…”
Vale mencionar aqui que essa fórmula de certa infamiliaridade do segredo, da sexualidade escondida de todos, está presente também de forma invertida numa outra obra do “anime japonês” – A Princesa e o Cavaleiro (Ribbon No Kishi) de Osamu Tezuka onde a princesa Safiri finge ser príncipe para lutar pelo seu reino mas em cenas conflituosas aparece como princesa diante do amado Francis (e em cada episódio, Francis parece ignorar quem realmente ama). Também essa certa infamiliaridade sexual está presente em outra obra literária — Orlando, de Virginia Woolf de forma pulsante. E claro, não posso me esquecer de mencionar a animação Mulan da Disney onde o mesmo tema da inversão sexual para guerrear acontece. “Precisa-se mesmo ser homem para ser guerreiro, para ser valente?”, pergunto-me! Acredito que tanto faz! Mas parece-me que o código do guerreiro é a testosterona. Na antítese dessa linha, temos o sucesso no cinema da Mulher Maravilha, Capitão Marvel entre muitas outras possibilidades de inversão (quem lembra do prepotente Yentl da Barbara Streisand?).
Mas prefiro nesse trabalho, tentar comprovar através de análise que a estranheza, a inquietante dúvida de uma certa homossexualidade “em e de” Riobaldo é comprovação de desejo pelo mesmo sexo. Diadorim se disfarça de jagunço, atua numa composição andrógina em aparência e masculinidade, desperta desejo em Riobaldo e este está sob o encantamento da ação da aparência e dos equívocos que ela pode ou não causar. Ironia pensar que esta certa infamiliaridade dos equívocos e das decisões sexuais mal elaboradas está na clínica contemporânea?
Inúmeras passagens carregadas de subjetividade de Riobaldo fortalecem a existência de uma ferida narcísica amorosa, da homossexualidade latente — da homo-afetividade declarada — onde a sutileza da feminina atenção de Diadorim dirigida a ele faz esse objeto de desejo sexual se deslocar do masculino ao acting-out feminino, numa constante ambivalência. Essa ambivalência de Diadorim, masculino repleto de feminino no ato e na aparência, esse enigma andrógino sedutor, é uma DAS UNHEIMLICHE derivada da principal na obra, é estranhamento que assombra Riobaldo, mexe com a libido desse moço.
(...) Mas os olhos sendo os de Diadorim. Meu amor de prata e meu amor de ouro. De doer, minhas vistas bestavam, se embaçavam de renuvem, e não achei para olhar para o céu. (GSV, p. 41).
“mas a voz dele era tanto-tanto para o embalo de meu corpo. Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele – os gostares...”. (GSV, p. 41).
“E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente. O corpo não translada, mas muito sabe, adivinha se não entende”. (GSV, p. 125)
“Eu tinha súbitas outras vontades, de passar devagar a mão na pele branca do corpo de Diadorim, que era um escondido”. (GSV, p. 275).
“Beleza – o que é? E o senhor me jure! Beleza, o formato do rosto de um: e que para o outro pode ser decreto, é, para destino destinar... E eu tinha de gostar tramadamente assim, de Diadorim, e calar qualquer palavra”. (GSV, p.510).
“Dele”, pronome demonstrativo masculino… e não “dela”, pronome demonstrativo feminino. Ao usar o pronome masculino, Riobaldo nos conduz na sessão de análise interminável que não sabia que Diadorim era mulher. Portanto, estava apaixonado pelo jagunço. Vale reparar que a preferência do objeto sexual de Riobaldo é masculino com traços delicados femininos (mas isso não assegura ao jagunço Riobaldo heterossexualidade no amor).
Numa obra de crítica e análise literária — “O Amor na Obra de Guimarães Rosa”— o autor Benedito Nunes frisa que Riobaldo conheceu três tipos de amor. O amor por Otacília na Fazenda Santa Catarina, o amor incendiário e neurótico por Diadorim repleto de cismas e dúvidas, e o amor por Nhorinhá que era prostituta mas não menciona o quarto tipo de amor por Rosa’Duarda, que na verdade é o primeiro das brincadeiras sexuais iniciantes o que por muitas vezes os pais torcem que aconteça — para que o filho não caia nas garras da “suposta vida sexual anormal” pré-julgada pelos genitores. Porque talvez seja vida que não dá descedentes, muito menos honra! Quando lêem-se as memórias desse rio de palavras, que é Riobaldo, percebe-se a familiariedade equivocada com o âmbito da heterossexualidade. Mas, nesta jornada pelo sertão, nessa “agon” mítica clássica, temos sim a paixão homoafetiva que óbviamente é morte e nesse cerne dessa “agon” temos a crueldade das dúvidas neuróticas obsessivas de Riobado frente ao seu desejo que gera todo o desconforto numa queixa-negação sobre seu desejo!
Qual motivo levam um sujeito a permancer colado à uma certa escolha sexual imposta por um grupo? Cultura, destino, desejo reprimido? E quando entramos no âmbito do destino, temos muitas passagens na obra onde Riobaldo se queixa de ter encontrado em seu caminho Diadorim mas prefere aceitar esse amor como inevitabilidade — um “maktub”.
“... mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois. (...) (GSV, p. 118).
E termino a minha prosa retratando que nessa segunda leitura elaborada com escuta e olhos de psicanalista como escrevi no começo me faz chegar à conclusão que a obra é um longo e vivaz caso psicanalítico a céu aberto. Será que posso me considerar um dos “DETETIVES SELVAGENS” de Bolaño? Ou um escoteiro discípulo dos detetives literários de POSSESSÃO de A. S. Byatt?
Riobaldo é um analisante que verbaliza transferencialmente para um leitor psicanalista, um Sujeito Suposto Saber ou melhor ainda um Sujeito Suposto Leitor muita prosa por livre associação e quem me dera produzir uma movimentação na organização subjetiva nesse jagunço perdido em seu desejo que clama por uma reparação na repetitiva fala — “O senhor me organiza…?”. É uma frase quase católica que pode ter saído por condensação de: “Pai… Organiza minha vida e assume o controle de tudo… Ajuda-me a fazer tudo o que preciso fazer, dai-me sabedoria, paz e discernimento em meio ao inesperado! Esteja presente sempre em meu coração. Amém”. Que homem de fé é esse jagunço! Se pudesse responderia — “eu te ajudo a organizar-se e a entender que “viver é um descuido prosseguido” (parafraseando Rosa em GSV).
Uma vez psicanalista, a boa escuta de Grande Sertão: Veredas me deixa com os olhos e a mente cheia de novas possibildades, novas dúvidas e novos sintomas infamiliares contratransferênciais que não me impedem de “SER-TÃO” ou mais desconfiado que Riobaldo quando ele diz pela tipografia impressa na página:
“o senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa.”
Final da sessão de análise. Riobaldo volta para o Sertão ou melhor, para a estante.
Mas ainda retorno a ler esse romance pela terceira vez…
Recentemente descobri que João Guimarães Rosa faleceu em 19 de novembro de 1967, às 20h45. Quase duas horas depois, eu nasci. Que grande DAS UNHEIMLICHE.
Bibliografia
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