Psicanalisando a insustentável verdade não toda de Marilyn Monroe
Netflix nos presenteia este ano com um documentário e um filme perturbador sobre a vida do ícone. Mas para os psicanalistas o que nos cabe e resta interpretar?
Blonde e Mistério de Marilyn Monroe: Gravações Inéditas são duas atrações antitéticas da NETFLIX. Nenhuma delas chega a trazer um perfil real da atriz, mas certamente nos coloca numa posição de dúvida em relação à turbulenta vida de Norma e sua procura por psicanalistas e psiquiatras.
Fato é que o filme, baseado num livro fantasioso mais está na direção do universo surreal de David Lynch (muitas cenas lembram o filme Twin Peaks: Fire Walk With Me) enquanto que o documentário trata de uma verdade que podemos tomar como não toda! Vejam bem, estou assumindo que o filme nem verdades nos brinda! Enfim, só especulações e teorias conspiratórias… além do clima onírico que gruda em nossa cabeça após Blonde!

Você que recebeu está newsletter e é psicanalista em formação ou já praticante pode pensar na famosa frase de Lacan — “cada um alcança a verdade que é capaz de suportar.” E o que significa isso?
Vejam bem caros leitores, acredito que como psicanalistas, não devemos cair na tentação saborosa de falar dessa perigosa e antitética verdade ou verdades. Vamos dar uma de Pilatos? E porque não? Lavamos nossas mãos diante dessa “verdade” que é a mais devastadora das palavras. Ousamos dizer que a verdade é também não toda! É também não toda quando estamos pensando em diagnóstico, em estrutura em sintomas e tentamos encaixar o paciente numa determinada psicopatologia para poder assim ter uma espécie de… condução do tratamento.
E por falar em diagnóstico existe outro filme bem interessante sobre Marilyn — Sete dias com Marilyn (My Week with Marilyn) que mostra a visão de Colin Clark das tretas de Marilyn e Lawrence Oliver. Colin era o assistente de Sir. Lawrence Olivier no filme The Prince and the Showgirl e durante a estadia da atriz no Reino Unido teve muito o que reportar! Exatamente nessa época, além da gravação do filme Marilyn está em sua lua de mel com Arthur Miller. O filme mostra a frágil personalidade da atriz reforçada pela dependência das expectativas que ela deposita nas relações e as graves e dramáticas oscilações de humor. Marilyn Monroe poderia sim ter sofrido de Transtorno de Personalidade Limítrofe ou Borderline… poderia… mas…
…Não acho impossível que o Dr. Ralph Greenson – psiquiatra e psicanalista de Marilyn em Los Angeles tenha chegado ao mesmo diagnóstico.
No último ano da vida de Marilyn, ninguém sabia mais sobre o frágil estado de espírito de Marilyn do que seu psiquiatra e psicanalista. Não sabemos ao certo como Marilyn entrou em contato com Greenson. Parece que veio recomendado pelo advogado de Marilyn, Milton Rudin — ele era cunhado de Greenson, portanto faz muito sentido — mas há quem diga que veio pelo grande amigo de Arthur Miller, Frank Taylor, ou ainda pela psicanalista de Marilyn em Nova York, Dra. Marianne Kris, em agosto de 1960, quando Marilyn foi levada de volta para Los Angeles para um rápido tratamento hospitalar durante as filmagens de The Misfits. Quando Marilyn estava fazendo o último trabalho de pós-produção de The Misfits, ela visitava o Dr. Greenson em seu escritório em Beverly Hills todos os dias da semana. Todos os dias…
E antes que você me pergunte, sim, Marilyn teve mais de um psicanalista. Em Nova York era a Dra. Marianne Kriss e acreditem se quiser, Anna Freud recebeu Marilyn para algumas sessões em Londres! E inclusive Anna deu belos toques ao Greenson sobre a condução do tratamento de Marilyn.
Bem, voltando ao filme Blonde podemos assistir de forma fantásmica a desintegração egóica do eu vulnerável dessa garota traumatisada!
O filme trata de misoginia? Machismo? Talvez sim! De qual época estamos nós falando mesmo?
Ana de Armas, a atriz de Blonde nos mostra todo o falso-self construído, instalado perversamente pelo Outro Hollywoodiano – ela é Blonde, über erotizada numa fábula perversa dirigida por Andrew Dominik, baseada no livro de Joyce Carol Oates! Blonde é puro objeto libidinal, destino pulsional desenfreado e tóxico para um ego tão cindido! Mas nossa Blonde se utiliza deste falso-self para ganhos primários e secundários. Ela se movimenta pro Hollywood dinâmicamente… entre casamentos… capas de revista… fotos eróticas… filmes… amantes e poliamor!
O filme é puro desamparo, é abuso o tempo todo… é assédio… é tigre de pelúcia que nos conduz até um desfecho perverso onde nunca houve um “daddy”, onde só existiu ilusão após uma realidade deformada pela ausência de figuras paternas funcionais. E esta desintegração deve ter sido presenciada por Greenson… de certa forma!
Durante 30 meses Marilyn esteve em sessões com Greenson. Este psicanalista atendeu grandes nomes de Hollywood — Peter Lorre, Vivien Leigh, Inge Stevens, Tony Curtis e Frank Sinatra (que foi namorado de Marilyn). Ele era fanático por cinema, estava dentro dos estúdios da Fox, atendia sujeitos míticos, e até desejava ser diretor de cinema. Greenson até criava filmes onde Marilyn seria a estrela e também funcionava como repositório das queixas da Fox dos atrasos, faltas e problemas que Marilyn causava.
Muitos criticavam as técnicas de cura deste psicanalista onde o método era criar uma metáfora paterna ou familiar fazendo de sua presença em sua casa/consultório uma imago de adoção! Mas parece que essa estratégia só causou mais entraves para Marilyn. Ela sabia que isso era uma ficção!
Diante de possíveis dificuldades contratransferênciais, Greenson pede ajuda ao médico e psicanalista de Freud — Max Scheler — para receber Marilyn para algumas sessões. Elas ocorrem mas estranhamente, Greenson estava cada vez mais ligado a Marilyn e parece-me que sentia ciúmes de compartilhar a analisanda!
Numa viagem à Europa com a esposa, Greenson deixa com Marilyn uma peça de xadrez como “memento”, um objeto transacional – um cavaleiro. Simbólico não?
Marilyn, insatisfeita implica Greenson no retorno a Los Angeles. Vale salientar que Marilyn era muito amiga da esposa de Greenson, e talvez estivesse mais conectada com Greenson DADDY do que Greenson psicanalista.
Durante essa fase do tratamento, um associado a Greenson, Milton Wexler alerta Greenson sobre essa conexão erotizada entre psicanalista e analisanda – e um pouco antes da morte de Marilyn, Wexler foi enfático ao comunicar a seu colega que Marilyn estava presa numa teia contratransferêncial criada por Greenson e implicada por Marilyn. Mas essa relação com Greenson você caro leitor, não verá no filme. O filme é sobre erotização da morte e fábula de destino ficcional!
Coloco aqui essa trama endogâmica (veja o esquema na sequência, abaixo), onde qualquer tipo de neutralidade analítica foi aniquilada pela excessiva exposição midiática de cada um dos participantes! Ética psicanalítica deturpada? Voltamos para a verdade não toda no início desta newsletter. Quem realmente poderia ter ajudado Marilyn a se ajudar a suportar o processo associativo de elaboração das frustrações inerentes a uma cura?
Marilyn tinha grande dificuldade de fazer livres associações e por este motivo deixou para Greenson muitas fitas k-7 gravadas.
Caro Greenson, tudo complicado mesmo ou a analisanda era um caso difícil? Talvez você tenha falhado como objeto transferêncial princeps ou como objeto a – mas você não era o pai fantásmico ou a mãe má presente-ausente no sanatório… Por qual motivo ou verdade você acreditou que sua aproximação erotizada poderia ser a suplência parental ou familiar de Marilyn?
A espera do pai ausente é bem apresentada em Blonde. Aliás fio condutor da narrativa! Para Greenson, esta espera era mortífera para Marilyn. Uma única luz de amor diante das ausentes carências primarias maternas.
Marilyn representa para os psicanalistas um caso de fracasso clínico sem precedentes? Talvez sim! O que ela recebeu, foi nada mais que sexo e desejo projetado sobre o falso-self além de Norma Jean Baker! Ela certamente demandava muito mais do que isso, algo muito além deste falso-self vociferante – Blonde. Marilyn era imaginário puro… Como se ela comprovasse um dos aforismas lacanianos… “a mulher não existe…”
Interpreto como verdade não toda que ela apenas desejava uma história familiar neurótica, não em nome do pai ausente, da mãe psicótica e da filha orfã… acredito que dentro de uma normalidade a qual muitos pacientes repudiam.
Durante os dias finais de sua vida Marilyn esteve bem ocupada. Vamos espiar sua agenda?
10 de abril - Marilyn participa de testes de figurino e maquiagem para Something’s Got To Give
21 de abril -Filmagem inicial de Something’s Got To Give –
19 de maio - Celebração do aniversário de JFK no Madison Square Garden
1º de junho - Última aparição pública de Marilyn
8 de junho - Marilyn é demitida de Something’s Got To Give
23 de junho - Primeira sessão de fotos da Vogue com Bert Stern
28 de junho - Começam as negociações com a Fox sobre a retomada do trabalho em Something’s Got To Give
29 de junho - Sessão de fotos de George Barris
4 de julho - Entrevista final de Marilyn, com Richard Meryman
12 de julho - Marilyn encontra os chefes de estúdio da Fox
28 de julho - Marilyn passa o fim de semana no Cal-Neva Lodge
3 de agosto - Marilyn aparece na capa da revista Life pela última vez antes de sua morte
4 de agosto - Dr. Ralph Greenson passa seis horas com Marilyn — que sessão longa!
Agora aconteceu a trágica morte…
5 de agosto - A polícia é chamada depois que Marilyn é encontrada morta em sua casa em Brentwood… “O que aconteceu nessa noite? Foi suicídio? Acidente? Ou algo mais sinistro?”
8 de agosto - O funeral de Marilyn é realizado no Westwood memorial Park em Los Angeles, CA
O que importa para nós psicanalistas é considerar as ilusões e desilusões do trabalho psicanalítico de Greenson e claro nossas verdades não todas, em nossas análises pessoais, no nosso trabalho e em nossas supervisões!
E… você sabia que existe até uma história em quadrinhos sobre as últimas sessões de Marilyn e Greenson?