Tenho sonhado com certa frequência com o Enzo, meu labrador gigante e preto que tive que sacrificar em dezembro de 2016 por conta de uma agravante insuficiência renal. Esse cão simbolizou uma conexão forte com a pureza do amor verdadeiro. Lembro-me que ele dava medo nas pessoas pois era enorme e caminhava de forma ameaçadora. Mas era a doçura e gentileza em corporificação canina! Era divertido ver pessoas passando para o outro lado da rua. Enzo era uma espécie de representação do “Barghest”, um cão negro mítico do folclore anglo-saxão. Diz a lenda que quem cruza o caminho do Barghest, morrerá em breve!
Tenho outro cão menor achado no Parque Raposo Tavares e adotado, uma versão menor do Enzo, portanto recebeu o nome de Enzo Junior. Diz o Escritor Valter Hugo Mãe que seu cão Crisóstomo é o cão mais lindo do mundo. Engana-se meu querido escritor… é o Enzo Junior, meu pequeno e genial SRD.
É muito interessante ver as coincidências entre os amantes dos cães na insistência fantasiosa da hereditariedade pela repetição do nome. Talvez seja a difícil tarefa de aceitar a elaboração de luto. Yves Saint Laurent teve quatro buldogues – Moujik, Moujik II, Moujik III e Moujik IV. Já Freud, teve três cães – Wolf, Jofi e Nun. Jofi II veio bem mais tarde e o nome foi uma homenagem de Anna Freud a Jofi.
Wolf, o primeiro “pet”, um cão pastor, foi presente para sua filha Anna em 1925. Era uma companhia para ela passear por Viena pois era uma garota mais solitária e instrospectiva. Não estranhamente, Freud se apegou mais a Wolf do que Anna. Sig percebeu a sinceridade e pureza na troca amorosa ente humanos e cães! Óbviamente havia transferência nessa relação entre espécies. Jofi e Nun vieram depois.
Para Freud, as razões pelas quais podemos amar os cães com tamanha profundidade — seja Jofi ou Topsy (o Chow-Chow de Marie Bonaparte que também morreu devido ao câncer na mandíbula), está na inclinação destas criaturas para uma vida livre de conflitos habitando uma beleza singular.
Certa vez, numa carta para a princesa Bonaparte, Freud escreveu — “…explica-se do porque uma pessoa pode amar um animal como Topsy (ou Jofi) com tal extraordinária intensidade, afeição sem ambivalência… a simplicidade da vida livre dos insuportáveis conflitos da civilização, a completa beleza da existência em si mesma… quando acaricio Jofi me pego assoviando uma melodia, nada musical que sou, reconheço uma aria de Don Giovanni… um laço de amizade nos une.”
Sabemos que o mundo canino nos transmite a ideia de um ambiente mais solar, amortizado dos choques da realidade atual — pensando pela atual vida covidiana vejo e leio relatos pela internet de pessoas bem-humoradas a atravessar a pandemia relatando peripécias caninas. Uma trapalhada rende mêmes, stories e pululam o Tik Tok. Claro que gatos são incríveis mas, fico com os cães assim como Sig, pois concordo com ele quando dizia que natureza do cão para ele era “suprimir prioritariamente o conflito”.
O filho mais velho de Freud, Martin, comentava que Jofi entrava nas sessões e levantava-se ou bocejava no exato momento que uma sessão terminava. Que bela assistente! Ou dirigia-se à porta (indicando ao paciente a saída?). Certa vez a analisanda poetisa Hilda Doolittle reclamou na sessão que Freud estava mais interessado em Jofi que nela! Talvez isso não seja lenda! Numa outra vez, Jofi pulou no divã sobre outro paciente, permanecendo grudada ao analisando. Freud disse — “Veja, Jofi está tão animada pois você descobriu a origem de sua ansiedade”.
Jofi partiu em 1937. Mas se você puder visitar o Freud Museum em Londres poderá ver muitas fotos e filmes dos cães junto com os Freuds. Inclusive uma foto de Jofi II com Anna Freud. Existe até um poema escrito por Wolf na ocasião do aniversário de 70 anos de Freud. “Bonitinho vai?”. Quem nunca humanizou seu “pet” com falas, roupas e etc…
Estes cães nunca foram analisados por Freud. Mesmo sabendo cientificamente que eles sonham, portanto temos inconsciente canino, talvez Sig não pudesse conceber estruturas neuróticas, perversas ou psicóticas nestes amigos peludos. Seria demasiadamente humano? Fato é — eles amam, sentem falta de seus mestres, têm medo e mordem as pessoas que não gostam. Freud dizia, de acordo como nos contou Anna — “cães são diferentes dos humanos, que são incapazes de amar puramente e sempre misturam amor e ódio em suas relações objetais.”
Os cães nos comprovam a existência de amor muito além da linguagem que nos atravessa. Esse amor resiste à linguagem e portanto resiste à aplicabilidade da Psicanálise? Talvez…
Lembro-me que eu dizia — “pum de cão, alegria no coração” — quando o Enzo estava deitado no longo corredor de casa e soltava um “peido” em direção ao meu quarto. Era hora de dar mais um passeio! Faz falta isso! Linguagem e mitos caseiros de meu percurso. E por falar em mitos…
Freud interessava-se muito pela mitologia. Isso meu caro leitor, certamente você já sabe! Parece-me que Sig também se interessou pelo mito do garoto órfão criado por uma loba, sem grandes desenvolvimentos. Já Édipo Rei muito o interessou. Jura? (risos)… Cabe aqui uma novidade, o Mito de Édipo nos desloca para a análise entre um homem e um cão através de uma matriz mítica maternal, sob a éfigie da sexualidade e da filosofia. Explico:
a esfinge é uma cadela. Ela é filha de Orthos (cão de duas cabeças irmão gêmeo de Cérberus, cão de três cabeças). Já foi retratada inúmeras vzes com o corpo felino. Está errado! Ela não era leoa!
o famoso enigma filosófico é solucionado por Édipo-Rei ou Oedipus-Rex (Rex… nome comum de cachorros pois o cachorro é Rei. Ao menos para quem curte e trata bem)
o pastor que levou Édipo ao topo do monte Cithéron prendeu-o pelo tornozelo exatamente como se prendiam cães pela pata na época — Édipo homem-cão?
Édipo é traído – reforçando o item 3 - também pelo seu nome. Pé Inchado (oedi como em edema e podo, pé)
O encontro do Édipo com a esfinge não tem como objeto princeps a interdição ao incesto. O mito marca uma humanização. A esfinge, mestre dos “nós mentais” que se produzem ao tentar-se resolver os tais enigmas, libera o homem de sua prisão como cão (preso pelo pé). Assim Édipo prepara-se para o incesto. Podemos até articular aqui que após ser atravessado pelo desejo, Édipo agora homem se ergue em direção ao seu destino!
Destino. Uma palavra que me move muito. Quando penso em destino, imagino não só o maktub, fatalismo árabe. Penso nas coincidências bacanas que a vida oferece. Por exemplo, visitar um local e anos depois descobrir que alguém admirado também por lá esteve.
Freud visitou um local fantástico que tive o prazer de visitar. Exatamente em 5 de setembro de 1902 Sig esteve visitando as excavações de Pompéia ou o Parco Archeologico di Pompei. De lá, Sig adquiriu e enviou 20 cartões postais, daqueles de turistas mesmo. Essa era uma forma bem animada de Freud em mostrar que esse local era alvo de desejo de visitação e satisfeito com o passeio compartilhou, sem Facebook ou Instagram, as impressões que pôde do local. Não se tem notícias ou impressões se Freud esteve na Estação Ercolano Escavi e desceu pela via IV Novembre até Herculaneum, como eu.
Mas concentrando-se em Pompéia, acredito que os famosos cães de rua que vagueiam por lá até hoje entre as hordas de turistas já perambulavam por ali quando Freud flanou por aquelas ruínas.
Será que Freud assim como eu foi acompanhado pelos peludos durante sua visita? Quando fui, eles me acompanharam muito. Claro, aguardavam comida! Focaccia para eles dei com certeza!
Essa é uma sequência de fotos e nomes dos guias caninos de Pompéia. Em Herculanum temos um número menor de “penetras caninus”. Certamente Freud chegou a xeretar as placas e mosaicos — e.g. “Cave Canem” – Cuidado com o Cão, um dos mais belos. Usamos isso até hoje e podemos comprar em papelarias de tamanhos diversos. Eu sinceramente prefiro a sintomática placa “Cão anti-social”, um pouco mais analítica.
Na verdade, em 79 d.C quatro cidades foram devastadas pela erupção do Vesuvius. Pompeii, Herculanum, Stabia e Oplontis. Em Pompéia especificamente, existe um molde de um cão que não fugiu à tempo e foi envolvido pelo fluxo piroclástico.
Para Bénédicte Gorrillot, Pompéia especificamente é uma “imago-agalma” de um momento peculiar da história de nossa civilização. Acho isso lindíssimo! Pois é exatamente essa impressão que temos ao visitar sítios arquelógicos tão preservados como esse e que mantém a estrutura de uma “póli” satélite de Roma. Essa agalma diante de nossos olhos e sob nossos pés como ruínas cumpre o papel de aproximar o que é distante ou até inacessível (modo de vida romano quase similar ao nosso contemporâneo) ao presente, encerrando a inacessibilidade ao passado, dentro de um sentimento angustiante — “estamos aqui vendo e velando o que ocorreu com vocês”. E voltando-se para a memória dos cães em nossas vidas, como é interessante saber que eles já estavam lá alegrando muita gente! Os cães nos acompanham faz tempo e acredito que ensinam que mais vale à pena uma lambida no rosto do que uma lancinante preocupação. Talvez, enquanto você lê este post, estarei perambulando com o Junior por aí…
De tanto ver fotos do Enso Jr. (suponho que seja o júnior) no Facebook acabei me afeiçoando a ele e, ao iniciar sua narrativa senti certo aperto no coração pela morte dele! Mas que alegria ao saber que não é ele quem (posso dizem quem?!) morreu. Sim, era seu antecessor, aquele a quem eu não conheci...