"Round 6" no divã, sem medo de morrer…
Nos últimos dias, essa série coreana cheia de truísmos gameficados me chamou a atenção pela presença de teorias anticapitalistas em todos as redes. Proponho outras desmistificações mais profundas
Entre e deite-se no divã, minha cara Netflix! Enfim, eu assisti ao “Round 6” e gostei. Mas não pelas mensagens truístas, aquelas repetições óbvias sobre a ganância, a desigualdade social ou mesmo o livre arbítrio que todas as mídias estão explorando. Bora elaborar e intrepretar um pouco sem medo de se ferir?
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Sessão 1 – Transferência e Contratransferência
Gostei mesmo pela fábula de k-drama, pela linguagem cinematográfica em si, o argumento do roteiro e atuações exageradas, típicas do cinema coreano. Temos personagens tão tolinhos — um gangster, um líder genial e impiedoso, um abestalhado sofredor e fracassado, uma fugitiva de um regime militar ditatorial, uma traumatizada por abuso e violência, casais endividados que erraram nas decisões familiares, um velhinho doce e misterioso, um imigrante paquistanês e muitos outros dispensáveis que certamente morrerão de forma grotesca para o susto ou prazer dos netflixers durante 9 episódios!
Apesar de ser chamada por aqui de “Round 6” prefiro “Squid Game” que é o nome original — inclusive o logotipo da série é a desconstrução do campo de “Squid Game” associado à grafia coreana (O, J e M — três letras que encontramos na expressão “Ojingeo Geim” ou “Squid Game”). Ficamos com o círculo, o quadrado e um triângulo que também serão usados na hierarquia presente nas máscaras dos soldados armados de roupa pink que mais parecem formigas. Aliás, que capricho criativo em todos os uniformes verdes escolares dos jogadores (reparem, uniformes escolares), na roupagem dos guardas, na endumentária do Front Man que estudava Lacan e claro, nas máscaras douradas de animais dos macabros e perversinhos VIPs. Os carrascos são mascarados e sem-identidade, garantido o anonimato. Nós ficamos apenas no anonimato digital nas redes, não é?
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Sessão 2 – Transferência e Contratransferência
Essa história distópica apresentada por você Netflix, não é novidade. Tivemos “Hunger Games”, “Saw”, “The Handmaids Tale” (O Conto da Aia), “La Casa de Papel” e podemos até ir mais longe no passado: Passolini e seu “Saló”, Liliana Cavani e o “Porteiro da Noite” já brincaram no playground da aniquilação e do genocídio. Assim, estes contos distópicos nada trazem de tão novo. A linguagem sim, muda um pouco. Então o pesadelo recebe nova configuração. Vejam — o Insconsciente é estruturado como linguagem. Numa obra que considero fundamental para os psicanalistas e bem recente, Hervé Mazurel (“L’inconscient ou l’oubli de l’histoire”, 2021 — ed. La Découverte) afirma com maestria que o Inconsciente fiou preso a um postulado freudiano assustador — para Freud, o Inconsciente tocava o homem eterno, e não o sujeito repesentante de uma época, de uma cultura, de um universo particular temporal! Na minha opinião, Mazurel acerta em cheio. Somos sujeitos estruturados pela linguagenm da época que vivemos. Por este motivo simples somos sujeitos completamente diferentes dos pacientes de Freud — até sonhamos de forma diferente! Chega a ser óbvio não é caro leitor? Tenho pacientes que sonham que estão em videogames! Um deles tem pesadelos onde está preso num mundo que ele construiu no Minecraft. Olhem aqui os inclassificáveis sintomas de rompimento de laços sociais.
Nessa série, vemos uma espécie de oneirogmos de hiper-violência traduzido em imagens, um aspecto lúdico rudimentar onde os pratagonistas são levados para uma ilha deserta (estilo “NO LIMITE” e “SURVIVOR”) e se predispõem a jogarem versões de brincadeiras infantis em modo mortífero ativado! Então, mais adiante da série, os já mencionados VIPs mascarados assistirão e apostarão nas partidas, usando os corpos dos cavalos-humanos como destino pusional perverso e sexual — um gozo típico dos filmes de Pasolini (morte e sexo — o corpo do outro disponível como mercadoria). E porque não lembrar de “O Mercador de Veneza” — quantas coisas não pagamos com nossa própria carne nesse mundinho, não é?
O sonho vira pesadelo, o risco de vida e a morte certa ratifica o modo cinético da gameficação tão atual — "Call of Duty” misturado com “Roblox”! Portanto, atinge a garotada no cerne perverso da vida descartável — essa fórmula é infalível até certo ponto pois… quais crianças de hoje brincam de “Batatinha Frita”, “Cabo de Guerra”, “Bolinhas de Gude”? Estas brincadeiras estão esmaecidas nas últimas gerações — não existem mais. Não acontecem nem como rituais de rememoração. Vejo muito futebol e bicicletas ainda pelo mundo afora — mas… estas outras brincadeiras infantis foram uma grande sacada do criador Dong-hyuk Hwang pois é fácil explicar as regras para qualquer idade! Nos dias de hoje estes jogos são meramente gincanas escolares quando surgem!
Sessão 3 – Transferência e Contratransferência
Recentemente num post de Instagram, uma escola promete avisar ao pais sobre o “péssimo conteúdo da série”. Então qual seria a grande preocupação das escolas avisarem aos pais sobre os perigos da série? E quais perigos estamos falando nessa pré-censura? Diante da interpretação equivocada do mal que a série causaria (essa série tem mesmo esta onipotência?), alguém da escola escreve que a “Round 6” tem cenas de pederastia! Tem algumas poucas cenas de sexo — quase explícito (depende de sua classificação caro leitor). Mas quando escrevem “pederastia” — por exemplo, essa escola comete um erro. Seria melhor escrever o que? Nada. A cena em si, faz parte da história onde um policial se deixa seduzir por um VIP. O policial procura seu irmão, que poderia estar entre os jogadores, e deixa-se seduzir propositalmente para continuar sua fuga do complexo. O termo pederastia (do grego clássico composto de παῖς, “criança” e ἐράω, “amar”) designa o relacionamento erótico entre um homem e um menino. Mas ao enfatizar este aspecto entre outros mais chama a atenção para a palavra do que para trama em si. Explicando melhor — qual é o problema na cena onde dois homens adultos parecem consentir o provável contato sexual que não ocorreu e serve como fio condutor de uma fuga? Não tem nenhuma criança na cena! Dois adultos…
Isso me trouxe uma lembrança — em 1982 minha escola ginasial promoveu uma palestra para adolescentes sobre educação sexual. Chamaram um médico e uma médica e separaram meninos e meninas em duas salas. Nós garotos tivemos uma rápida introdução ao mundo das paredes uterinas que já tinhamos esquecido, fomos avisados que masturbação causava problemas e… que homossexualismo era doença! Oi? Quer que eu desenho o “aprés-coup” dessa frase claramente dita por um médico? Os colegas de escola começaram a se afastar de outros que eram rotulados de homoafetivos por não serem bons ou boas em atividades desportivas. Os que não se enquadravam nos inúteis gabaritos de machinho-alfa foram exilados. Que desserviço não é verdade? Semeadura de preconceitos.
Sessão 4 – Transferência e Contratransferência
O visual dos jogos é impressionante. Violência hostil, mega-calculada e executada com realismo nada trivial! Mas já vimos isso inúmeras vezes. Novamente, é só mais do mesmo de uma mesma linguagem atual de um glossário genocida. Adiciona-se uma carnificina digital, cenários intrigantes e surreais que misturam Magritte com Escher, elementos de ficção científica, trilha sonora estranha, contrabando de órgãos como trama paralela para desviarmos um pouco a atenção do elemento mais conspícuo da série: a crise financeira e o endividamento do povo sul-coreano e o que eles poderiam fastasmáticamente fazer para escapar da trágica falência pessoal e familiar!
Todos os jogadores são devedores de alguma forma — devem para agiotas, bancos, instituições de empréstimo… devem dinheiro. Muito! E a solução é depositada num porquinho de vidro dourado, e sobre as cabeças dos participante no gigantesco dormitório. A isca — o tal cofre transparente — é alimentada constantemente de acordo com as mortes. O cofre é a solução princeps! O jogo é vendido aos participantes suicidas como uma solução definitiva igualitária e meritocrática. Todos tem a mesma possibilidade de vencer. O que é impossível pois cada um tem sua subjetividade, corpulência e robustez e talento ou habilidade. Esse é um belo engodo — na vida real não temos e nunca teremos a mesmas chances para nada! Isso nunca existiu. Somos sujeitos limitados por inúmeras características da nossa intimidade e da nossa extimidade! Não podemos ser um Gi-Hun… ou somos ele!
Sessão 5 – Transferência e Contratransferência
Percebam… Gi-hun, desde o primeiro episódio já é o vencedor. Só não sabemos como será o seu percurso. Mas com certeza será ele o recebedor dos 45.6 bilhões de Wons. Interessante cifra pois logo no início da série ele recebe como prêmio ao apostar em cavalos exatamente 45.600.000 Wons. Além disso ele é o jogador de número 456! Pistas gamers — ele será o vencedor? Sim. Grande spoiler não? Inclusive 456 é o código do cartão de banco para o acesso ao prêmio! Então eu decidi cara Netflix, acompanhar a odisséia de Gi-hun e suas pataquadas, suas alianças e suas pequenas trapaças principalmente no episódio 6, mais discutido e apreciado onde ela traí a confiança de um senhor doente. Um episódio tão ingênuo que até uma criança percebe que não se vê o velhinho tomar um tiro quando perde a prova, o que significa que ele retornará de alguma forma! Ainda acho o episódio 4 e a luta entre os jogadores sob luz estroboscópica um espetáculo à parte! Exatamente por este motivo você Netflix avisa previamente em alguns países que a cena pode ser gatilho para ataques epilépticos.
Gi-hun representa mais do que qualquer outro jogador a nossa miséria humana, inclusive encarna um grande fracasso como pai ou mesmo filho. Dramas comuns. O jogador 456 é mais do mesmo… é um sujeito barrado de todas as formas imagináveis. Um anti-herói, o looser, que espelha uma ordinário desejo nosso de fácil enriquecimento. Ele nos mostra que para ser “o ou um”vencedor, ele talvez conseguirá conectar muitos fatores em seu pecurso: superar os mais fracos, os discriminados e os que tiveram má-sorte ou simplesmente foram arremeçados ao acaso da inabilidade, inapetência e despreparo físico…
…e o 456 deverá adicionar ao seus destino um pouco de falta de caráter!
Ao vencer não sabe o que fazer com o dinheiro, não sabe como bancar o seu desejo. Apenas pinta o cabelo de vermelho e parece que se tranformou num ídolo K-pop — só que não! Spoiler… antes ele encontra a mãe morta no cortiço onde mora. A mãe que ele literalmente se esqueceu pois teve uma chance de sair do jogo mas decide retornar à tortura gamificada! Que anti-Édipo!
Sessão 6 - Transferência e Contratransferência
A série não é nada além disso. Uma busca por grana depois da falência financeira. E por apresentar esta linguagem de fácil acesso e compreensão, tranforma-se numa semeadura de mêmes, artes digitais, teorias conspiratórias e transmutações linguísticas — teremos histórias em quadrinhos em breve estilo mangá, uma possível transposição para uma atração num parque de Dubai que certamente fará grande sucesso e até recentemente um convite para uma “suruba”no Rio de Janeiro (baseada no jogo transliterado Batatinha Frita — a luz será apagada num recinto e vale tudo)!
A cultura K avança. Partimos do K-pop para o oscarisado “Parasite”, que posso chamar também de k-drama. Isso é interessantíssimo pois a absorção do conteúdo oriental nos mostra que estamos cada vez suscetíveis a absorver diferenças culturais. Acho isso muito positivo! Quebra barreiras da intolerância e nos promete a descoberta de novidades, nem tão novas assim. Mas tá valendo… e muito!
Nos identificamos um pouco com a série pois somos atravessados pela dívida e pelo desejo de dinheiro fácil pois também passamos por séria crise! Mas, todo o roteiro de “Squid Game” tem um nascimento comprovado econômicamente e particular — vale salientar que a dívida externa na Coréia do Sul aumentou drásticamente nos últimos anos para mais de 100% de seu PIB — que é o maior da Ásia. Os 20% mais ricos do país têm um patrimônio líquido 166 vezes maior que os 20% mais pobres, uma disparidade que dobrou em 2017.
Tem ocorrido um aumento da dívida em relação à renda e uma recente alta nas taxas de juros. Parecido conosco não? Isso deixou todos que não têm recursos para lidar com eventos não planejados — demissão ou uma doença familiar, em uma posição ainda mais miserável. Então é exatamente por este motivo que surgem as teorias falaciosas sobre a culpa é do capitalismo e etc… Não meu caro leitor — o buraco é mais profundo ainda!
O Índice de Gini, que mede a distribuição da riqueza nacional, coloca a Coréia do Sul no mesmo nível do Reino Unido e em uma posição melhor do que os EUA. Mas o crescente desemprego entre os jovens, o aumento dos preços da moradia e a claro — a pandemia do COVID-19 impactaram a humilde redução da desigualdade experimentada nos últimos anos sob o governo progressista de Moon Jae-in.
Vejam bem, não são apenas as famílias que estão se endividando para pagar os custos de moradia, alimentação e educação. Em agosto deste ano, o governo sul-coreano anunciou novas restrições aos empréstimos com o objetivo de reduzir a dívida entre os jovens. A tal geração Y e aqueles na faixa dos 30 anos são os que mais se endividam em relação à sua renda — puro consumismo sintomático partindo de celulares, computadores, roupas e lazer! Surge então o fantasma da possibilidade de recuperação financeira! Que vai de encontro à série!
As tentativas de restringir os empréstimos também causaram um grande efeito colateral negativo — levaram os coreanos de baixa renda a recorrerem a credores com custos e riscos mais elevados. Hummm, terão que pagar com a própria carne! Assim, esta opção deixa muitos à mercê dos agiotas estilo “gansgter”. Apesar de que fantasmáticamente poucos possam se ver nas mãos de gângsteres que ameaçam retirar seus órgãos para venda, como mostrado no “Squid Game”! O fardo em si de uma dívida avassaladora é um problema social que se aprofunda — sem mencionar a principal causa de suicídio na Coréia do Sul.
Schadenfreude! Schadenfreude!
Existe uma contradição infamiliar e humorística entre os acontecimentos grotescos na tela e a música romântica e clássica da trilha sonora. Muitas vezes não se conectam propositalmente para criar um clima cartunesco. Por exemplo, a preparação sinistra para o famoso primeiro jogo, incluindo a passagem ao longo de uma escada Escheriana, é acompanhada pela valsa do Danúbio Azul de Johann Strauss!
Outro momento muito interessante de “Squid Game” se conecta mais ainda com a validação de seu sucesso na Coréia do Sul pois vai de encontro à memória televisiva popular. Quando os participantes acordam em sua primeira manhã em seu dormitório surreal, a trilha sonora consiste no triunfalista Concerto para Trompete de Haydn, que já foi usado anteriormente como trilha sonora em um popular jogo de perguntas coreano chamado “Janghak Quiz” (1973-1996).
"Squid Game” também inclui um nível de violência característico do cinema ocidental, mas vejam bem… raro na televisão coreana. É uma grande e perversa surpresa para o público de lá! Por ser novidade, explode na mídia.
Terminamos por aqui minha cara Netflix! Obrigado pela programação instigante. E vamos aguardar pelo Squid Game 2. Afinal, nesta era covidiana a fórmula das séries e nosso costume de maratoná-las substituiu nossa frequência vilipendiada às salas de cinema — que espero retornar a frequentar em breve. Ainda bem que você existe e claro, os outros canais de streaming também. Sem todos vocês teria sido mais dificil passar pela pandemia que espero estar no seu final.