Sente-se cara Demência, o jantar está servido!
O filme “Meu Pai” nos coloca diante da finitude pela falência cerebral e afogados num trabalho de despedida que muito incomoda…
Fiquei surpreso com a beleza e profundidade do filme “The Father” — (“Meu Pai”). Achei que vale um compartilhamento e o aviso — muitos prêmios no caminho dessa obra cinematográfica e já um de meus filmes favoritos não só para o Oscar 2021 como para a vida.
O título do post tem conexão com a cena de um jantar nesse filme. Veja você mesmo quando puder caro leitor. O longa-metragem chega para compra online no dia 9 de abril nas plataformas Apple TV, NOW, Google Play e YouTube. A modalidade de aluguel ficará disponível a partir de 28 de abril, junto com o lançamento na Vivo Play e no SKY Play. Portanto, prepare-se!
Não é a primeira vez que somos seduzidos a participar de patologias, sintomas e outras doenças mentais na tela. “Still Alice” — (“Para Sempre Alice”), “Shutter Island”— (Ilha do Medo), nos colocaram propositalmente diante delas e também de certa forma como testemunhas do que o protagonista vê e sente. Muitos outros filmes já experimentaram vergonhoso insucesso. “The Father” — (“Meu Pai”), tenta e tem êxito - de forma realista e vertiginosa. E exatamente por causa dessa nova forma, vale a reflexão.
Neste filme o diretor Florian Zeller e autor da peça “Le Pére”, vai além da tentativa para nosso entretenimento. Ele tem uma experiência forte por ter vivido desde os seus 15 anos de idade com uma avó que desenvolveu Demência. Estamos então diante da sublimação premiada do traumático. Premiada pois onde a peça foi representada, teve reconhecimento — em 45 países! Agora, transposta para o cinema uma desorientação é divida conosco de forma intrusiva e… participativa. O que o diretor-autor quer mostrar é a decadência, a finitude que se aproxima, a fase de negociação entre os que ficam e os que já estão no proscenium da partida e por aqui “incomodam”! E incomodam muito por causa da Demência! Então perguntamos diante do agravamento da doença, quem acolhe, quem não acolhe esse sujeito? Se você nunca viveu algo similar, não pode julgar as escolhas mostradas no filme que são pertencentes à realidade vivida por Zeller e a fantasia cinematográfica por Anne.
“Que experiência nova meu caro leitor!”
Pela primeira vez um diretor consegue na “época covidiana” causar desorientação através de um filme! E nessa falta de rumo, a mágica do cinema entra com novos significantes e símbolos — o principal é um apartamento que também merece ser explorado. É importante reparar nisso, pois o primeiro “estranhamento” está na mudança de móveis e quadros que nos pega de surpresa! Não somos avisados disso! E nos perguntamos… “Ué… o que aconteceu com essa sala, aqueles lustres… os quadros?”. “Pode isso produção?”, “Quem errou?”. Estamos experimentando a desorientação por “via psíquica de Anthony”.
Mas vale ainda comentar um pouco sobre como tudo se desenvolve para quem sabe seduzir você a assistir ao filme.
Anne (Olivia Colman) cuida de seu pai Anthony (Anthony Hopkins), que já apresenta a Demência em evolução. E o tempo dentro do arco narrativo dessa história nos prega peças — sempre do ponto de vista do pai que é o doente. Ele se recusa a ter ajuda de uma cuidadora que se parece com uma filha falecida e Anne, pretende mudar-se para Paris com Paul e portanto necessita resolver a situação grave em Londres diante da vociferante Demência do pai. O filme é praticamente isso!
Cenas do quotidiano se repetem. Um relógio de pulso desaparece — para ser achado depois no lugar onde sempre esteve, não sem antes Anthony causar confusões! Rabugento, intransigente e brincalhão, Anthony incomoda, fantasia, provoca… nos faz questionar o que é “esse tempo” para uma pessoa que sofre. Perde-se então a noção do dia e da noite… E o apartamento começa a se modificar cada vez mais e começamos a nos confundir da mesma maneira que Anthony se confunde.
Atores diferentes entram e saem ocupando o mesmo papel. Alguém está “trolando” Anthony – até desconfiamos do atual “gaslighting” — i.e. forma de abuso psicológico onde as informações, o que se vê, o que se lê ou ouve-se são deformadas e distorcidas, seletivamente e propositalmente omitidas para favorecer um abusador ou um grupo de abusadores, ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer um sujeito-vitima duvidar de sua memória, percepção e finalmente, sua sanidade. Até imaginei que o apartamento estava sendo dilapidado pela filha em mudança. Mas Anne é tão vítima do destino quanto o pai. E quantas vezes não somos vítimas do inesperado?
Vemos o quanto ela se esforça. Ela acolhe enquanto pode. Ela tem limites. Mas Anthony só tem a filha. Ele é parte integrante da vida dela, e vice-versa? Não… essa via do abandono é de mão única, numa radical heterenomia.
Para Anthony, horas do dia-a-dia perdem sua continuidade e algumas cenas parecem em deteriorante repetição na maestria da edição do filme. O apartamento continua o mesmo na distribuição de aposentos e salas… mas… não é mais o anterior pois a decoração esta sendo vilependiada num jogo engenhoso. O “flat” como Anthony chama, já não é o mesmo e nem é mais o dele.
Existe um livro interessante da psicoterapeuta francesa Christine Ulivicci – “Psychogénéalogie des Lieux de Vie – Ces Lieux Qui Nous Habitent” (Psicogenealogia dos Lugares de Vida, Estes Lugares Que Nos Habitam) que trata com maestria sobre as questões psicananalíticas de nosso entorno caseiro, nosso NINHO! No caso, argumenta-se o que acontece com os significantes do lar em nosso aparelho psíquico ao nos desprendermos dele de forma voluntária ou obrigatória! No filme, o que acontece com o “flat” é um fraco fio sustendador da sanidade que nos coloca na desorientação!
A mudança de elementos e das cores do “flat” é o impacto princeps de diagnóstico de que algo não vai bem! Belo gatilho da trama narrativa. E conosco também não vai nada bem ao compartilhar da Demência do pai pois durante o filme a ideia é sentirmos a tal desorientação de forma crescente! Num vai e volta, num espécie de “fort-da freudiano”, entramos num recordar, repetir e desorientar. Cenas são retomadas de determinados instantes. Fatos reprisados. E chegamos a um final contundente que ficará colado em nossas mentes e talvez uma das melhores atuações do ano! Anthony nos convoca ao holding! Mas não temo como ajudá-lo.
Faz anos, outro filme sobre a velhice deixou um gosto amargo na minha vida de cinéfilo. Era Amor do Michael Haneke. Recomendo assistir… mas Haneke, que adoro… deve ser consumido com moderação.
Para finalizar, atenção, a Demência não é Alzheimer. Você se lembra daquela coisa toda enzima é proteína mas nem toda proteína é enzima? Então… Demência é um grave sintoma achado em muitas doenças cerebrais e quem tem Alzheimer pode desenvolver Demência. Então nem toda Demência vem do Alzheimer.
A Demência foi descrita em 1906 pela primeira vez pelo médico Alois Alzheimer depois de ter realizado uma autopsia numa paciente que tinha grande perda de memória. Ele encontrou um cérebro encolhido e cheio de anormalidades envolvendo os neurônios. Até antes da nossa vida pandêmica – 2019, uma pessoa era diagnosticada com Demência a cada 3 segundos. Por qual motivo? Estamos vivendo muito mais. Apesar de termos o Covid entre nós alterando todas as estatísticas médicas estes números não são mais contabilizados da mesma foma desde o início de 2020, mas são garanto que são assustadores.
Perda da memória, mudanças comportamentais, variações de humor e até personalidade, sentir-se perdido, incapaz de se encontrar ou guiar-se em lugares familiares ou conhecidos e a incapacidade de manter uma bate-papo comum são sintomas graves e crescentes da Demência — pode-se chegar até à completa inaptidão para se alimentar sozinho. Esse grupo de sintomas nos convocam ao diagnóstico de possível Demência num paciente idoso. Os tipos mais comuns de Demência são:
Demência Vascular
Doença de Parkinson
Demência de Corpúsculos de Lewy
Demência Frontotemporal
Doença de Huntington
Demência provocada pelo álcool (Síndrome de Korsakoff)
Doença de Creutzfeldt-Jacob
A Demência proveniente do Alzheimer
A recém-descoberta Late
Vale salientar que pacientes jovens que apresentam Transtorno Afetivo Bipolar ou extremamente depressivos tem alta probabilidade de desenvolver demência na velhice. Assim como obesos, hipertensos e pessoas com Diabetes Tipo 2. Drogadictos também.
Esqueci meu relógio no banheiro ao lavar as mãos e ante-braços (uma prática neurótica obsessiva recém-desenvolvida por conta do medo do Covid) mas quando olhei para o pulso esquerdo e não o vi… estranhei e por segundos senti aquele desespero até me recordar que estava ao lado da pia. Esse estranhamento, essa breve desorientação é um simples exemplo não amplificado da Demência. Imagine viver numa constante ausência de rumo e esquecimento!
Uma crítica belíssima deste filme que eu ainda não pude apreciar. Fiquei desejosa de ter uma experiência tão profunda quanto esta! A Demência é um fantasma amedrontador na caminhada do envelhecimento, portanto não sei como vou interagir com todos estas questões tão bem colocadas em seu texto. Parabéns pela apresentação deste espetacular filme que merecidamente concorre à premiação do Oscar!
Vi hoje. Excelente!