Superego atlético e matador... adeus!
Simone Biles me fez pensar muito à respeito de limites nesta semana e também que "ceder não é consentir"
Caro leitor. Trago boas notícias. Somos limitados e podemos comandar um pouco da nossa narrativa… ao menos no âmbito daquilo que podemos controlar.
A Simone Biles não é minha analisanda mas convido você à reflexão. Confesso que achei a movimentação da ginásta desafiadora — vai na direção contrária a tudo e a todos! Retificação subjetiva do “atletas não são ciborgues!” e deve-se cuidar muito bem da saúde mental.
Simone não é uma atleta que abandona uma competição, apenas. Ela encarou seus limites físicos e psíquicos. Ela os enxergou à tempo? Talvez sim.
Existe uma história complicada nos bastidores nem tão bastidores assim! Ela é uma das atletas que denunciou abusos de um molestador — Larry Nassar — e um abandono visível pela Associação Olímpica Norte-Americana. Para quem não sabe, Larry Nassar é um médico esportivo, um osteopata extremamente perverso, que abusou sexualmente de inúmeros atletas. Um doutor bem taradinho! Em julgamento até hoje, utiliza-se de artimanhas geniais para se safar… e consegue. Infelizmente.
Foco na saúde mental!
Mas quando Simone declara publicamente — “Preciso focar na minha saúde mental. Temos que proteger nossas mentes e corpos e não apenas sair fazendo o que o mundo quer que a gente faça”, ela coloca-se no centro do significado clínico e político do aforismo “ceder não é consentir”.
Parece-me que Simone finalmente para de “ceder” à vontade vociferante dos outros, da máquina neoliberal da qual fazemos parte e corrói o frágil tecido psíquico da sanidade de cada um de nós!
Existe uma grande profundidade nesta distinção (“ceder não é consentir”) valendo-se da Psicanálise. O tal “consentimento” carrega sempre consigo um possível enigma… afinal, “consentir” é dizer "sim”, sem ter ideia do contexto de um pacto de confiança à vir com o outro. Mas é menos doloroso que o “ceder” que pode carregar o embotamento na fraqueza e da ausência de luta pelo desejo real! E “consentir” é encarar aquilo que deseja-se com responsabilidade!
Imagino também na minha análise do evento, que Simone vai em direção à metamorfose que ninguém esperava — ela mesma viabiliza a aniquilação do Superego atlético matador e dá ao seu corpo um renascimento na borda de uma “évenementialité” — uma “acontecimentalidade” da ordem do “isso não faço mais, me recuso, não suporto e não continuarei…”!
E essa “acontecimentalidade” me faz pensar exatamente na fonteira entre “ceder” e “consentir”! Possibilitar-se deslocamentos particulares para menor dano psíquico. Assim, Simone consente-se à viver melhor com seus fantasmas, parece-me.
Mas entenda, este “ceder”, que também não deve ser confundido com algo forçado mas pode ser, nos coloca diante do trauma sexual e psíquico no caso de Simone, inundado de exaustão e “burn out” concreto! Explicando melhor… imagino no que ela cedeu, em que ela consentiu, no que ela deixou-se levar, foi forçada a fazer o que não queria e não desejava? Pertence a ela recordar, repetir e elaborar nestas fronteiras…
Fronteiras turvas que dizem respeito a todos nós se adentramos na análise pessoal! Quem nunca cedeu em algo ou a algo sem “consentir”? Pare para pensar e examine a possibilidade de encontrarmos linguagem própria para afirmamos nosso Eu quando formos convocados em situações à borda do traumático. Veja a nobreza e a força do “consentir”, que exige maior empenho e metabolização pulsional! Mas não veja o “ceder” como fraqueza… veja como possibilidade de ausência de saída momentânea!
O que poderia ter sido nos jogos em Tóquio para Simone não nos diz respeito. A possível medalha de ouro foi foracluída? A medalha repudiada comporta fantasmáticamente a questão do que poderia ter sido mas não foi? Vejam que interessante, nas redes sociais discute-se exatamente o que poderia ter sido mas não foi. Mas o sujeito atleta… é vilipendiado do seu direito de sofrer pois deseja-se o show!
Esse problema — o que poderia ter sido — na verdade, não é nosso. Mas a saúde mental é um problema que nos interessa e muito!
Simone faz a negação pular na nossa cara! Sabe o que poderia ter sido mas não reinvidica essa posição. Ela nos congela no “não pare no que poderia ter sido e veja o que é”, pois ela sofre e não pode mais seguir sofrendo. Ela atingiu o limite de silêncio cedido, e não consentido… silêncio forçado talvez!
Interessante, é como um final de análise tornado público… um belo “não” bem dito!
Finalizando, o tio Lacan afirmava que a Psicanálise no âmbito anticapitalista nos permite dizer “não”, um “big não”, e que grande revolução, não é verdade? Eu adiciono “não” ao que poderia ter sido e gera sofrimento antes mesmo de ocorrer ou vir a ser e não ao que deve-se ser expurgado ou exorcizado! Pratique o não e tente parar de “ceder sem consentir”.
Enfim… Que garota gigante essa Simone Biles não é?
Que texto lindo! Simone merece uma medalha de ouro pela atitude. Você merece meus parabéns (talvez uma "pena" de ouro?!) por este texto tão empático, tão preciso sobre esta jovem corajosa que deu um basta em tudo aquilo que o "lado oculto" do esporte olímpico exige ceder...
Texto gigante, caro Fabio! E bem ilustrativo de um olhar clínico ético e compromissado com a escuta do desejo do outro.